Mais do que em qualquer outro momento nos últimos dez anos, dois terços da população do planeta vivem em países onde a liberdade de expressão é altamente restrita ou está em crise. De acordo com o Relatório Global de Expressão 2021, lançado no final de julho pela Artigo 19, a liberdade de expressão no mundo registrou seu mais baixo nível em uma década. Essa entidade não governamental global desenvolveu os indicadores que compõem o índice GxR (ver Fig. 1), sigla que significa Global eXpression Report. Essa métrica monitora a liberdade de expressão em 161 países por meio de 25 indicadores que produzem uma pontuação geral para cada país, em uma escala de 1 a 100.
As pesquisas da ONG revelam que mais da metade da população mundial (3,9 bilhões de pessoas) vive em um país com o indicador de liberdade de expressão na categoria “em crise”. O Brasil é destaque negativo na análise, apresentando as quedas mais acentuadas do índice GxR em todas as comparações realizadas.
O relatório observa que globalmente a liberdade de expressão vem se deteriorando desde 2014, com quedas significativas em 2020 nos indicadores de protesto e participação pública — dois elementos-chave da liberdade de expressão e da democracia como um todo.
Efeito colateral da pandemia
Para além da letalidade, a pandemia também virou pretexto para governos autoritários adotarem novas medidas de controle da liberdade de expressão e de repressão a manifestações de rua. “A emergência de saúde pública foi vista como uma desculpa para limitar a democracia e centralizar o poder”, destaca o relatório.
Os dados da Artigo 19 confirmam a tendência observada também pelo Instituto V-Dem, da Universidade de Gothenburg, na Suécia, que monitora a democracia no mundo desde 1789. De acordo com o Relatório de Democracia V-Dem 2020, o nível de democracia desfrutado pelo cidadão médio global no ano passado caiu para os mesmos níveis encontrados pela última vez por volta de 1990, e 68% da população mundial vive atualmente em autocracias, contra 48% em 2010.
Segundo a ONG, entre os direitos humanos fundamentais, a liberdade de expressão foi a maior vítima da pandemia no ano passado: “Dois terços dos países do mundo todo impuseram restrições à mídia; muitos implementaram estados de emergência contrários aos padrões dos direitos humanos”. Houve uma enxurrada de novas leis e regulamentações pelo planeta — pelo menos 57 envolvem liberdade de expressão e 147, manifestações de rua.
Liberdade de imprensa
Os dados coletados pela Artigo 19 e analisados em seu relatório revelam que a imprensa também sofreu globalmente sérias restrições ao seu espaço de atuação. Foram registradas prisões, perseguições e ataques aos profissionais, ocultação ou falsificação de informações e censura direta, entre outras ações.
Somente nos primeiros 14 meses da pandemia foram registradas em todo o mundo 620 violações à liberdade de imprensa: 34% foram ataques físicos e verbais a jornalistas; outros 34% foram prisões de jornalistas ou acusações de governos a jornalistas e organizações de mídia; e 14% foram restrições impostas pelos governos ao acesso à informação.
Outras formas de expressão, como a sátira, as artes visuais e a música também foram alvo de governos em todo o espectro do GxR. Segundo o relatório, “no mundo todo, mais de 300 artistas foram arbitrariamente detidos, processados ou condenados à prisão, principalmente por motivos políticos, como críticas a funcionários do Estado ou símbolos nacionais — especialmente acerca da pandemia”.
Os jovens direitos digitais dos cidadãos sofreram numerosos ataques em 2020, especialmente “a liberdade de cada pessoa para postar na internet, protestar, pesquisar e acessar as informações de que precisa para participar da sociedade”. De acordo com a Artigo 19, mais governos do que nunca recorreram a desligamentos e a restrições do acesso à internet — foram pelo menos 155 desligamentos em 29 países.
Juntamente com o aumento da vigilância digital, os governos passaram a depender mais das forças de segurança e de táticas policiais violentas e a usar a rede mundial de computadores para divulgar desinformação, informação errônea e “notícias” falsas, num cenário que expõe as “rachaduras em nossos sistemas de governo”.
País em foco: Brasil
De 2015 para cá, o Brasil perdeu 33 pontos na escala GxR, deixando de ser um dos países com maior pontuação mundial para ser classificado na categoria de liberdade de expressão “restrita” (ver Fig. 3). O retrocesso aconteceu em todas as frentes: em plena crise de saúde pública, a população foi privada de informações verdadeiras e silenciada; ao longo de 2020, Bolsonaro emitiu 1.682 declarações falsas ou enganosas (média de 4,3 por dia), além de ter tentado repetidamente ocultar do público o número de casos e as informações sobre a Covid-19.
No sumário executivo do relatório, a Artigo 19 registrou 464 declarações públicas do presidente da República, seus ministros ou seus assessores próximos que atacavam ou deslegitimavam jornalistas e seu trabalho. Muitos desses ataques foram protagonizados pelos filhos de Bolsonaro, que também ocupam cargos públicos.
Essas atitudes levaram diversas autoridades locais bolsonaristas a repetir atitudes de assédio e ações judiciais contra jornalistas. Na esfera digital houve um aumento exponencial dos ataques, principalmente nas redes sociais. Das 254 violações observadas em 2020, pelo menos 83 (33%) foram perpetradas online, com as mulheres sendo atacadas de forma desproporcional.
No Brasil, comunidades indígenas, defensores da floresta e do meio ambiente, artistas, movimentos sociais e o próprio sistema eleitoral, canal de expressão fundamental das democracias modernas, estão particularmente sob ataque desde o início do governo Bolsonaro. Houve pelo menos 15 casos de violação da liberdade de expressão relacionados ao período eleitoral entre 14 de outubro e 17 de novembro de 2020 – 16% do total observado no ano (42 casos).
Desviar o olhar não é opção
Na introdução do sumário, a diretora executiva da Artigo 19, Quinn McKew, alerta para a gravidade da situação global, no momento em que os governos precisam tomar decisões difíceis, capazes de superar a crise sanitária, sem no entanto quebrar o compromisso de construção de um mundo baseado no direito à expressão e à informação. “Estamos em um momento crítico”, diz ela. “Tal como acontece com as mudanças climáticas e a redução da pobreza, desviar o olhar não é uma opção.”
Para McKew, o caminho para a era pós-pandemia será lento e exigirá um futuro mais engajado por parte da sociedade e, especialmente, de instituições que lutam pela defesa de direitos fundamentais, como a liberdade de expressão. Mas alerta: “As organizações internacionais de direitos humanos não conseguem impulsionar essa mudança sem um envolvimento mais amplo de todos nós”.
Ela sugere investimentos significativos e ação continuada “para fazer da expressão um meio para fortalecer a saúde pública, impulsionar uma ação rápida contra a crise climática e apoiar a recuperação econômica”. E conclui: “Com um esforço global renovado para focar na liberdade de expressão, podemos – e iremos – ter sucesso na reconstrução de um mundo em que os direitos são respeitados e o poder é controlado; um mundo mais seguro, saudável e igual para todos e todas”.
Para saber mais:
Sumário Executivo do GxR em Português
Íntegra do GxR: Global Expression Report 2021
Instituto V-Dem (variedades de democracia)