Por Leda Beck*
“O tiozão do zap enchendo o saco
no grupo da família é só a ponta do iceberg.”
(extraído da legenda original da foto
anônima que ilustra esta reportagem)
Na noite de 30 de outubro de 1938, a rede de rádio CBS, que já tinha mais de 16 emissoras afiliadas por todos os Estados Unidos, transmitiu uma peça de teatro adaptada de um romance de H. G. Wells, A guerra dos mundos. O enredo descrevia uma invasão marciana nos EUA e a direção foi do ator e futuro cineasta Orson Welles. O evento foi claramente anunciado nos jornais e na rádio como ficção — mas o povo acreditou: o drama radiofônico gerou um drama na vida real, os ouvintes entraram em pânico, sobrecarregaram os telefones da polícia e muitos sofreram infartos e outros males, acorrendo aos hospitais.
Quase cem anos depois, o atual presidente dos Estados Unidos pergunta-se, ao vivo, durante uma coletiva, se o cloro injetado não seria uma boa solução contra o coronavírus. Sua força-tarefa para combater a pandemia estava ao lado: um médico riu discretamente, outro abaixo a cabeça, desolado; mas ninguém interrompeu a digressão presidencial para responder a pergunta. Não era ficção e não era um ator. No dia seguinte, porém, vários de seus eleitores beberam detergente de cozinha ou água sanitária e foram parar nos hospitais. Inadvertidamente, em sua vasta ignorância temperada por uma arrogância sem limites, Donald Trump tornou-se um dos mais perigosos difusores de mentiras no mundo, só comparável ao brasileiro Jair Bolsonaro.
A inocência dos ouvintes de 1938 e a fé cega dos eleitores de Trump em 2020 são exemplos singelos dos males que uma “notícia falsa” pode causar a populações desprovidas de espírito crítico e de informações confiáveis, desprovidas de uma cultura geral básica — aquela que permite diferenciar o teatro da notícia e a fantasia do fato, embora haja uma diferença essencial entre os dois casos: no primeiro, a verdade foi anunciada antes, durante e depois de a peça ser levada ao ar, no segundo, a estupidez de um homem é legitimada por seu cargo público e tem livre trânsito nos meios de comunicação, particularmente na internet, principal fonte de informação da maioria dos habitantes do planeta.
Mas Trump, como o “tiozão do zap”, é também uma ponta de iceberg. Por trás dele, como por trás de Bolsonaro no Brasil, Orbán na Hungria, Salvini na Itália, Duterte nas Filipinas e vários outros, há toda uma indústria de difusão deliberada de mentiras, que é, hoje, além de uma ferramenta poderosa de acesso ao poder, um negócio lucrativo, que cresce e se atualiza rapidamente. Tanto que a foto que ilustra esta reportagem já está defasada: as chamadas “fazendas de bots” (bot é uma corruptela do inglês robot, robô) usam celulares também virtuais, isto é, chips que emulam os telefones, para disparar em frações de segundo centenas, milhares, milhões de mentiras cuidadosamente elaboradas, em diferentes versões, para a faxineira, o porteiro e o síndico do seu prédio, para o vizinho do 10º andar que grita “vai, mito!” e para o pastor da igreja neopentecostal.
Dinheiro & mentira
Já não é necessário ter aparelhos celulares identificados por CPFs (em geral, roubados ou comprados em mercados clandestinos) e fisicamente conectados a computadores, como bem descreveram as reportagens de Patrícia Campos Mello na Folha de S. Paulo, antes do primeiro turno das eleições de 2018. Dezenas de empresas, sobretudo nos EUA, vendem legalmente números virtuais, razão pela qual as listas de telefones emissores de mentiras contêm quase que apenas números precedidos do código internacional +1, dos Estados Unidos.
O sociólogo Sérgio Amadeu, doutor em Ciência Política e professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), tem como tema de suas pesquisas os impactos da tecnologia na sociedade contemporânea. Ele é um dos nomes mais respeitados no Brasil em matéria de tecnologia. Defensor tenaz do software livre e da inclusão digital, denunciou os virtual phone numbers em 2018 à Justiça Eleitoral. Em vão. Vonage, Routee e Avoxi são apenas três das muitas empresas que vendem esses chips para o mercado publicitário, de telemarketing e de pesquisa de mercado, quase todas baseadas nos Estados Unidos, mais uma ou duas em Israel. Nos EUA, onde as relações contratuais privadas estão acima da lei, esse comércio já é legalizado.
Nenhuma das empresas entrevistadas por Amadeu e seus orientandos, vendedoras de chips e celulares reais ou virtuais, jamais reconheceu que seu produto também é utilizado pela indústria da mentira, o que é ilegal no Brasil. “O sujeito compra um monte de fones virtuais ou compra cadastros de números reais de telefone celular por meio de empresas legais e ilegais existentes no Brasil”, explica Amadeu. “No caso de celulares reais, é possível fazer a compra por perfil do usuário: rico ou pobre, alta ou baixa escolaridade, por estado da federação, por profissão etc. Depois, abre-se uma conta no WhatsApp, no Twitter e/ou no Facebook para cada um dos números adquiridos.” Caso seja necessário apresentar um CPF, no Brasil também é possível comprar cadastros de CPFs.
Mas os números virtuais e os cadastros de CPF são apenas um fio da meada. Ao redor deles, há uma enorme estrutura, tecnológica e de recursos humanos, responsável por montar uma eficiente operação de manipulação da opinião pública. Mas o cliente dessa “operadora” que organiza o bombardeio ininterrupto de mentiras precisa entregar o conteúdo pronto — o que requer a formação de equipes de geração de conteúdo, em diversos formatos. Pode ser chulo, como a famosa “mamadeira de piroca”, ou pode se dar ares de seriedade, exemplo, apropriando-se do nome de reputadas universidades ou de cientistas reais para promover o uso da cloroquina no tratamento da Covid-19.
Esse conteúdo também precisa apelar para as emoções que geram maior número de compartilhamentos ou retuítes: medo e raiva, ambos filhos da ignorância. “Nada disso leva em conta o dano causado à sociedade ou à democracia”, diz o cientista político Ricardo Poppi, que promove participação social e digital no Instituto Cidade Democrática. Com ele concorda Sérgio Amadeu, que acrescenta: “O chamado Gabinete do Ódio já existia nas eleições de 2018. Aparentemente, agora já não precisa tanto de patrocínio privado”.
Três mecanismos
O que é mais caro? A tecnologia ou o conteúdo? As duas áreas são intricadas, diz Poppi, “mas há um financiamento também para produzir o conteúdo em várias versões com a mesma mensagem, tudo articulado em muitas contas inautênticas, com uma pessoa real ou um robô gerenciando inúmeros perfis desse tipo”. O modelo de negócios das plataformas de rede sociais dá sustentação a essas operações, com seus princípios básicos de publicidade e de marketing que premiam quem atrai mais reações, aumentando a visibilidade de seus vídeos ou posts, além de aumentar a publicidade direcionada para eles e, em consequência, o lucro das plataformas.
A indústria da mentira é auxiliada por três especificidades das redes sociais: seus algoritmos, que são conjuntos de instruções de software; o “impulsionamento” pago de mensagens; e o sistema de distribuição de publicidade nas páginas do Facebook ou do YouTube, por exemplo, de acordo com o número de visualizações de um determinado post, vídeo ou mensagem.
No primeiro caso, o exemplo típico vem do Facebook: alguns de seus algoritmos são construídos para localizar imagens de seios femininos ou órgãos genitais na rede social e bloquear essas mensagens, atendendo a uma moralidade retrógrada do Meio Oeste estadunidense, que acaba censurando até obras de arte. Mas há instruções muito mais complexas e sofisticadas, que podem localizar e bloquear certos discursos políticos, por exemplo.
Os próprios bots são algoritmos. O robô de software usa um tipo de aprendizado de máquina chamado linguagem natural. Ele usa algoritmos de rede neural para, por exemplo, traduzir para texto um discurso oral, preencher automaticamente formulários online ou gerenciar o atendimento a consumidores. Há robôs criados especificamente para o WhatsApp: segundo Amadeu, eram apenas 5% do universo de robôs, mas agora já são 40%. Outros foram criados especialmente para o Twitter. Recentemente, os robôs do Twitter espalharam inadvertidamente a hashtag “Bolsonaro até 2016”. Amadeu explica: “Algum infiltrado fez a hashtag errada e os robôs saíram reproduzindo”.
No segundo caso, as redes podem “impulsionar” certas mensagens mediante pagamento. Inventado para atender uma demanda publicitária, de forma a repetir um anúncio diante de um determinado público-alvo, devidamente perfilado, o sistema agora atende qualquer um disposto a pagar para ver sua mensagem difundida massivamente. Foi o que aconteceu com os anúncios em favor do “sim” no primeiro referendo do Brexit: mentiras escandalosas (como a de que a Turquia entraria na União Europeia e, com isso, os turcos invadiriam a Grã-Bretanha) foram anunciadas no Facebook para perfis previamente selecionados por idade, gênero, inclinação política e status econômico.
Behaviorismo na origem
Anos atrás, o psicólogo Michel Kozinsky, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, postou um teste psicológico no Facebook que teve mais de um milhão de respostas. Quem respondesse o teste teria acesso aos resultados e também autorizaria Kozinsky a acompanhar a navegação do respondente na internet.
A escola behaviorista de Psicologia acredita que o comportamento das pessoas é mais revelador do que qualquer análise freudiana, junguiana ou lacaniana. O estadunidense Aleksander Kogan, cientista de dados que também usou o nome “Dr. Specter”, trabalhou como pesquisador associado em Cambridge. À revelia de Kozinsky, que se recusou a vender sua base de dados à Cambridge Analytica, mas com base na pesquisa dele, Kogan desenvolveu um aplicativo que permitiu à empresa colher dados pessoais de 80 milhões de usuários estadunidenses do Facebook.
Em seguida, a Cambridge Analytica criou um algoritmo para acompanhar a navegação dessas pessoas e, assim, definir seus perfis políticos. Então, cruzou os dados dos perfis com dados socioeconômicos colhidos fora do Facebook e criou os “nichos de mercado” mais vulneráveis às mentiras (A imensa maioria dos leitores desta reportagem, por exemplo, como sua autora, certamente nunca receberam uma mensagem do chamado Gabinete do Ódio, porque nosso perfil não serve para os produtores de mentiras).
“Não houve vazamento de dados”, explica Amadeu. “Houve uma ação supostamente não autorizada pelo Facebook, que, na época, permitia o acesso a esses dados para certas entidades, empresas e também pesquisadores. Hoje, o acesso está fechado para mim, por exemplo. Mas sei de pesquisadores brasileiros que ainda têm acesso aos dados, porque seus perfis são muito mais conservadores do que o meu. Um deles usa com frequência a expressão ‘Luladrão’ e outras palavras de ordem do bolsonarismo.”
“Educação política” pelo YouTube
No terceiro caso, o da distribuição de publicidade, o exemplo mais óbvio é o Google AdSense, sistema desenvolvido pela Google para distribuir anúncios por páginas, sites ou mensagens com o maior número de visualizações em redes sociais. Como as páginas e mensagens mais raivosas e odientas, que ostentam uma perversa ignorância, são justamente as que mais atraem o público virtual —assim como programas policiais na TV aberta são campeões de audiência, precisamente porque apelam para a ignorância, o medo e a raiva—, é nessas páginas que vão parar os anúncios distribuídos pelo Google AdSense, muitas vezes à revelia dos anunciantes.
No caso do YouTube, há um agravante: como o interesse comercial da empresa é que o usuário permaneça diante dos vídeos o maior tempo possível, se o sujeito assistiu, por acaso, um vídeo “raivoso”, o algoritmo abre em seguida mais um vídeo do mesmo tipo e mais um e mais um e mais um, o que explica porque há políticos do PSL, por exemplo, que se consideram “educados politicamente” pelo YouTube, como demonstrou recentemente uma extensa reportagem do New York Times.
Desse paradoxo — da “educação” política com base em mentiras grosseiras, derivadas de informação rasa e descontextualizada — nasceu nos EUA o SleepingGiants, que acaba de chegar ao Brasil: esse perfil anônimo do Twitter, com presença também em outras redes sociais, constrange os anunciantes ao informá-los, publicamente, onde foram parar seus anúncios. Lá, funcionou bem. As grandes corporações informadas retiraram seus anúncios dos sites do ódio.
No Brasil, mais de 400 empresas avisadas já retiraram seus anúncios dos sites produtores de mentiras. Mas algumas empresas que apoiam o atual presidente da República não o fizeram, como, por exemplo, a Riachuelo e as Lojas Americanas. Informado, o Banco do Brasil mandou tirar os anúncios desses sites, mas foi desautorizado pelo filho 02, popularmente conhecido como Carlucho, o vereador carioca que opera seus rancores no Palácio do Planalto e não na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro. No episódio, o diretor de Marketing do BB perdeu o cargo.
“Privacidade” vs. interesse público
Pronto o conteúdo, é preciso distribui-lo rápida e massivamente. É aí que entram empresas como a Yacows, citada por Campos Mello na Folha: com os celulares virtuais (ou não), essas empresas, também filhotes do mercado publicitário e de marketing, transmitem o conteúdo em várias plataformas de redes sociais, usando robôs de software e perfis falsos. Uma das redes preferidas é o WhatsApp, cujo modelo de negócios impede o rastreamento de mensagens, como forma de proteger a “privacidade” do usuário. Além disso, nos grupos fechados do zap (apelido popular do aplicativo no Brasil) é possível simplesmente eliminar divergências: se um membro do grupo começa a desconfiar das mensagens, ele é rapidamente bloqueado para não prejudicar a ilusão coletiva.
A política de “privacidade” do WhatsApp, que pertence ao Facebook, é extremamente útil à indústria da mentira, mesmo quando ela não serve a interesses políticos. Um caso notório ocorreu na Índia em 2018, onde 27 pessoas foram linchadas até a morte por causa de um boato espalhado via zap sobre um suposto traficante de crianças. Antes disso, com o mesmo resultado fatal, outra versão desse boato circulou por toda a América Latina, inclusive no Brasil, onde uma mulher foi linchada no Guarujá (SP) em maio de 2014 porque foi “identificada” pela turba como sequestradora de crianças.
O governo da Índia pressionou o WhatsApp para rastrear o boato, de forma a punir o autor, mas a empresa não concordou. O máximo que aceitou fazer foi limitar o número de encaminhamentos de mensagens, de 20 para cinco por pessoa. Mesmo essa nova regra só chegou ao Brasil muito recentemente e outra regrinha foi introduzida ainda mais recentemente: para mensagens com muitos encaminhamentos, o usuário só pode fazer um encaminhamento por vez. Mas quem decide quantos são “muitos”? Recentemente, duas mensagens diferentes foram submetidas a esse tratamento: um vídeo de Eliane Brum, que tinha 14 mil encaminhamentos; e um outro vídeo, de uma celebridade, que tinha 34 mil encaminhamentos. Por que a mensagem de Brum foi limitada em meros 14 mil e o outro só em 34 mil?
“Follow the money”
Eis aí o aparato de negócios e tecnologia da mentira que os parlamentares brasileiros resolveram combater por meio do Projeto de Lei nº 2630, o chamado “PL das Fake News”, que tramita atualmente na Câmara dos Deputados, embora eles pareçam não ter percebido a extensão do problema, ou pelo menos não se preocuparam com isso, a julgar pelo projeto que aprovaram no Senado.
Para o jornalista Breno Altman, do site Opera Mundi, “é importante combater as fake news mediante um fortalecimento do espaço público, não do espaço privado”, lembrando que o PL confere ao Facebook, por exemplo, o direito de eliminar conteúdo sem passar pela Justiça (o que, aliás, essa rede social já faz há muito tempo), sem falar nos danos que o projeto pode causar ao exercício do jornalismo. “Até o advento das redes sociais, quem regulava a liberdade de expressão era o poder público, através da Justiça; agora, são os próprios meios de comunicação privados — as redes sociais — que determinam tanto o conteúdo ‘aceitável’ quanto o fluxo de conteúdo”, explica Altman.
Tudo isso seria evitado se os parlamentares e os magistrados se dessem ao trabalho de examinar a legislação que já existe. O Brasil dispõe do Marco Civil da Internet e, principalmente neste caso, da Lei Geral de Proteção dos Dados Pessoais (LGPDP), já aprovada e em vigor, mas que permanece à espera de regulamentação. São os dados pessoais dos usuários das redes sociais, mal protegidos e até comercializados, que permitem a criação de “nichos” de usuários suscetíveis à mentira.
Mas o pior defeito do projeto de lei é que ele não segue a principal regra do combate ao crime: follow the money (siga o dinheiro). Produzir mentiras e distribui-las em massa é uma operação gigantesca, embora relativamente simples, e custa caro: um único empresário patrocinador investiu R$ 12 milhões na campanha eleitoral do atual presidente da República, de acordo com a famosa reportagem de Patrícia Campos Mello na Folha de S. Paulo em 2018. Investiu na mentira.
“É um número verossímil”, diz Poppi. “Essas organizações, ou quadrilhas, trabalham em escala muito grande. Para aprovar o Brexit ou eleger Trump e Bolsonaro, não basta meia dúzia de desenvolvedores numa garagem. É preciso toda uma estrutura de hardware, software e gente, tanto para produzir o conteúdo das mensagens mentirosas, como para garantir a disseminação rápida e abrangente, às vezes focada em nichos específicos ‘do mercado’.
Nada disso é barato.” Sérgio Amadeu concorda: “A campanha eleitoral de Bolsonaro teve o apoio de inúmeros empresários, que compraram os celulares virtuais e os planos de mensagem em massa, e alugaram empresas pra fazer os disparos. Foi uma campanha volumosa, caríssima, que usou a rede de maneira inteligente. Quando o Jornal Nacional planejava um ataque ao Bolsonaro, de manhã a campanha já preparava uma ‘vacina’ para ser disparada antes mesmo do JN”.
É preciso enfrentar também o oligopólio das plataformas de redes sociais e sua fonte de renda, gerada pelo impulsionamento de mensagens, que como visto acima proporciona recursos para a indústria da mentira. Sérgio Amadeu tem uma proposta interessante para resolver esse problema: obrigar as redes sociais a identificar mensagens impulsionadas, tarjando-as com o nome da pessoa ou empresa que pagou o impulsionamento e com o valor em reais ou dólares.
Medidas desse tipo tropeçarão num problema ainda mais abstruso: as redes sociais têm suas próprias regras (no Facebook, os chamados “padrões de comunidade”). Quando o usuário se filia a uma rede social, ele concorda com essas regras —certamente sem ler, como é hábito no mundo virtual, onde a imagem reina absoluta. O Conselho Europeu tem tentado limitar esse poder das corporações privadas de redes sociais, com grande dificuldade. Por ocasião do primeiro referendo do Brexit, diante das denúncias de manipulação da opinião pública via redes sociais, tribunais britânicos tentaram, sem sucesso, tomar um depoimento de Mark Zuckerberg, o criador e presidente do Facebook. Ele simplesmente não compareceu a três ou quatro convocações judiciais.
Planos pós-pandemia
No entanto, a partir dos escândalos e da pressão dos políticos, os executivos das grandes plataformas começam a se mexer. Dois anos atrás, Zuckerberg compareceu a uma audiência pública no Congresso dos EUA. A essa altura, já tinha comprado o Instagram, em 2012, por US$ 1 bilhão, e o WhatsApp, em 2014, por US$ 22 bilhões. Na próxima segunda-feira (27/07), o CEO do Facebook e os principais executivos da Alphabet (Google, YouTube e outros “filhotes”), da Apple e da Amazon aceitaram testemunhar diante da Subcomissão Antitruste do Congresso dos Estados Unidos.
O objetivo da audiência é discutir a aplicação da legislação antitruste a essas empresas. Todos os presidentes das gigantes resistem e costumam usar o argumento “mas e a China?”, de um jeito muito parecido com os que rebatem qualquer crítica ao atual governo com a pergunta “mas e o PT?”. Esses executivos garantem que qualquer limite ao poder sem freios dessas grandes corporações só vai servir para beneficiar a China. Acenam com um futuro terrível, dominado pela indústria chinesa de tecnologia.
Na quarta-feira, 6 de maio, durante sua coletiva diária sobre a situação do coronavírus no estado de Nova York, o governador Andrew Cuomo recebeu uma visita por vídeo de outro representante das empresas de tecnologia: Eric Schmidt, ex-CEO da Google, que apresentou seu “comitê pós-pandemia”, composto por CEOs de várias empresas do Vale do Silício. A ideia, disse ele, é aproveitar a experiência da pandemia para aumentar ainda mais a presença da tecnologia na vida de cada um de nós. “Descobrimos que o contato humano não é tão necessário assim”, disse Schmidt. Um dia antes, o próprio Cuomo anunciara uma parceria de seu governo com a Fundação Gates para implementar a “visão” do bilionário sobre educação. “Está claro que não precisamos de tantos prédios escolares, a educação pode ocorrer à distância, como está ocorrendo”, disse ele.
Na outra ponta
Mas estas são, na verdade, perspectivas desanimadoras no combate às campanhas de desinformação. Sem o contato humano, onde toda a linguagem corporal muitas vezes diz mais do que as palavras, difundir mentiras — seja via publicidade e marketing, seja via campanhas políticas disfarçadas — será infinitamente mais fácil, como já fica claro neste momento, com a difusão de falsas informações sobre a pandemia.
Na outra ponta do espectro ideológico, no entanto, aquela onde o “mercado” não é o principal motor das ações dos Estados, também começam a surgir propostas capazes de abordar a questão pelos seus aspectos mais estruturais. Nos Países Baixos, 170 professores universitários, de diferentes disciplinas, propuseram um projeto pós-pandemia com base num conceito elaborado pela economista inglesa Kate Raworth, pesquisadora das universidades de Oxford e de Cambridge.
As ideias de Raworth, expressas no livro Doughnut Economics: Seven Ways to Think Like a 21st Century Economist (Economia da rosquinha: sete caminhos para pensar como um economista do século XXI), de 2017, propõem um modelo de desenvolvimento sustentável, onde não é necessário “crescer” a qualquer custo e onde a prosperidade para todos é o principal. O modelo equilibra as necessidades humanas básicas e os limites planetários, pois “prosperar não é a mesma coisa que crescer”, diz ela.
A cidade de Amsterdam, inspirada pelo pré-projeto dos 170 professores neerlandeses, já aprovou a adoção da economia da rosquinha e montou uma equipe para trabalhar na implementação desse modelo assim que a pandemia passar: no centro do círculo está o ser humano, ou seja, o trabalho, a moradia, a saúde, a educação, o transporte público e a segurança pública; nos anéis circundantes estão as necessidades do planeta, as políticas ambientais.
É uma esperança. Numa estrutura social e econômica desse tipo, as chamadas fake news terão pouca possibilidade de prosperar. Populações que não são “educadas” politicamente por vídeos odientos no YouTube tendem a pensar melhor e a tomar decisões mais sábias.
*Leda Beck é jornalista e associada à APJor
Para saber mais:
Sobre o projeto de lei para combater as mentiras:
- Ameaça ao sigilo da fonte
- Os perigos para os jornalistas
- A ausência dos produtores e financiadores das mentiras
- Os deepfakes sofisticam a mentira
Sobre a “educação política” pelo YouTube
Sobre os assassinatos provocados por “rumores” no WhatsApp:
Sobre a distopia de alta tecnologia proposta por Eric Schmidt
Sobre a economia da rosquinha:
TED Talk da economista inglesa que propôs o conceito
Fotos: David McBee e Vitaly Vlasov, no Pexels (Montagem)