Assédio Judicial a jornalistas

Blogueiro dos bastidores do futebol responde a 30 ações na Justiça

Condenado à prisão pela terceira vez por crime de opinião, o jornalista Paulo Cezar de Andrade Prado (Blog do Paulinho) enfrenta mais de cem ações nas esferas criminal e cível. Agora corre o risco de voltar para um presídio, em plena pandemia. Veja na reportagem de Lia Ribeiro Dias

Por Lia Ribeiro Dias*

Com mais de cem ações nas áreas criminal e cível por crimes de opinião, 30 delas ativas, Paulo Cezar de Andrade Prado, 48 anos, corre o risco de enfrentar sua terceira prisão em regime semiaberto se a Justiça não lhe permitir cumprir a pena de cinco meses e 13 dias em regime aberto, por causa da pandemia, como pediram seus advogados.

Editor do Blog do Paulinho, criado em 2006 para tratar dos bastidores do futebol e do mundo dos esportes, o jornalista é paciente de risco: hipertenso, já teve tuberculose e broncopneumonia, sequelas dos tempos em que era motoboy. A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) entrou, esta semana, como amicus curiae no processo.

O atual mandado de prisão foi expedido no dia 23 de fevereiro deste ano, pelo juiz Marcos Vieira de Moraes, da 26a Vara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), e é resultado do processo de difamação movido contra o jornalista por Paulo Sérgio Menezes Garcia, dono da Kalunga, ex-candidato a presidente do Corinthians e figura ativa na vida do clube. Na queixa-crime, de setembro de 2016, Garcia diz que foi atacado em sua honra por duas matérias publicadas no Blog do Paulinho: “Paulo Garcia (Kalunga), que ajudou Andres Sanches (PT), entra na campanha de André Negão (PDT)”, de 16 de setembro de 2016; e “Vice do Corinthians utilizava o próprio filho para manobra contábil em apoio ao vereador”, de 28 de setembro de 2016.

As matérias se referiam a doações de campanha para um vereador, contabilizadas como suposto gasto com material impresso de R$ 113.159,36, sendo R$ 112.880,16 na Spiral (empresa que tem como donos Paulo Garcia e seu irmão Fernando) e R$ 279,20 na Kalunga. Segundo o blog, teria havido uma “manobra fiscal”, expressão que motivou todo o processo. Ao pedir a punição do jornalista, Paulo Garcia argumenta que o Blog do Paulinho frequentemente publica insultos contra ele e um membro da sua família.

Em sua defesa, só apresentada quando o processo foi transferido para a 26a Vara Criminal (não participou da audiência preliminar porque tinha mudado de endereço e não foi localizado), ele alega que não houve dolo e que denúncias semelhantes foram publicadas em outros sites. Mas a juíza Érica Aparecida Ribeiro Lopes e Navarro Rodrigues considerou a queixa-crime procedente e, em função das condenações anteriores, agravou a pena para sete meses e sete dias, mais 23 dias de multa, condenação que acabou reduzida no acórdão da 12a Câmara Criminal para os cinco meses e 13 dias.

De motoboy a blogueiro

Assédio Judicial a jornalistasPaulinho (foto), como é conhecido, já fez de tudo na vida. Foi office boy, auxiliar de escritório, vendedor ambulante, vendedor de seguros e motoboy em uma empresa que montou com um conhecido. Mas nenhum desses ofícios tocou sua alma. “Eu não me sentia realizado”, diz ele, enquanto aguarda o desfecho do mandado de prisão. No final de 2006, cansado de trabalhar 11 horas por dia na rua dirigindo sua moto, resolveu criar um blog para comentar as notícias do dia. Afinal, sempre gostara de ler e escrever. Passados uns poucos meses, viu que seu trabalho não ia ter futuro. E decidiu mudar o foco. “Eram poucos os comentaristas de esportes que falavam dos bastidores dos clubes”, recorda. “Achei que podia fazer isso.” Desde menino, frequentava o Corinthians e o futebol estava na sua veia.

À época, dois dos cronistas esportivos que mais o inspiravam eram Juca Kfouri, com uma longa e reconhecida carreira (revista Placar, rádios, vários canais de TV), hoje colunista do UOL e com programa de entrevistas na TVT; e Jorge Kajuru, polêmico radialista, sem papas na língua, com passagens por Band, SBT e TV Esporte Interativo, hoje senador por Goiás pelo Cidadania.

Em Juca, Paulinho buscava a inspiração para o garimpo de notícias, a pesquisa; em Kajuru, o estilo agressivo que lhe custou mais de 120 ações, como disse em entrevista. Hoje, o repórter reconhece que tentou uma mistura que lhe foi prejudicial, tal o volume de processos que acumulou com o uso excessivo de adjetivos: “Eu era muito ingênuo, achava que tinha que combater os malfeitos, meio a cruzada do bem contra o mal. E me expus. Com o tempo aprendi, fiquei mais comedido, tento fundamentar bem as minhas matérias”.

Logo depois de começar seu blog, trocou e-mails com Juca, para falar que era seu fã, que estava escrevendo sobre futebol. Um dia foi visitá-lo na CBN, onde Juca tinha um programa diário, e acabou sendo convidado para assistir a gravação no estúdio. E as visitas começaram a se repetir. Juca lembra que viu no seu entusiasmo um grande potencial, o estimulou a continuar com o blog, buscar notícias, investigar e fazer faculdade de jornalismo. Em 2008, ele iniciaria o curso de Jornalismo na Uninove, onde se formou. “Ele tem espírito de repórter, é corajoso, mas lhe faltou ser melhor orientado”, afirma, insistindo que suas prisões foram totalmente injustas. “Não se pune crime de opinião com prisão”, diz.

Criado entre o Brás e a Mooca, no chamado centro expandido de São Paulo, filho de um pequeno empresário, Paulinho abandonou os estudos no 2o grau e logo depois teve um filho, Mike, hoje com 29 anos e carreira de radialista. Casado com uma enfermeira que namorou por sete anos, conta que tem uma vida de classe média: “Não falta dinheiro, mas também não sobra.” Aos patrocínios do blog, soma-se o salário de sua mulher.

Ele avalia que os leitores foram atraídos pelo espírito de repórter investigativo, que permeava as matérias que publicava no blog: “Meus textos começaram a repercutir, às vezes as matérias eram comentadas por algum jornalista conhecido e aí começaram os problemas.” Da mesma forma que não se preocupava com a adjetivação, também não se preocupou com as ações. Por uns dois anos teve advogado na área cível, que trabalhava pro bono. Depois, abandonou de vez a questão por não ter dinheiro. Em apenas uma das condenações por dano moral em processos movidos contra ele pela Crefisa, patrocinadora do Palmeiras, sua dívida é de R$ 947.916,04 (a ação inicial era de R$ 180 mil). No início de março, o oficial de Justiça foi ao seu apartamento, mas não encontrou o que penhorar. Ele não tem bens, nem dinheiro no banco.

As prisões

O Blog do Paulinho mexeu com muita gente poderosa, de advogados, promotores e desembargadores, todos de alguma forma ligados ao esporte, a cartolas do futebol. São vários processos da CBF e seus diretores, de presidentes de vários clubes de futebol, de patrocinadores. Seu primeiro desafeto foi Kia Joorabchian, dono da Media Sports Investments (MSI), que manteve uma parceria com o Corinthians entre 2004 e 2007, desfeita depois que foi pedida a prisão de Joorabchian, de outros diretores da MSI e de diretores do Corinthians, por formação de quadrilha e lavagem de dinheiro. Conhecido por suas ligações com Boris Berezovsky, um dos mais ricos magnatas russos, Joorabchian moveu 23 ações contra Paulinho – uma para cada matéria onde era apresentado como “o mafioso”. “No lugar de dizer supostamente ligado à máfia russa, eu escrevia o mafioso”, reconhece o repórter. “Uma besteira.”

Mas foi uma ironia que fez com o advogado Antonio Carlos Sandoval Catta-Preta que o levou à prisão. Catta-Preta era conhecido por ser advogado de personalidades ligadas ao futebol, como o técnico Vanderley Luxemburgo e o apresentador de TV Milton Neves. Já tinha processado Paulinho em nome de alguns clientes por crime de opinião. Quando Paulinho escreveu que Catta-Preta era “melhor halterocopista do que advogado” (“ele vivia postando fotos com copo de vinho na mão”, relembra), ele o levou à Justiça e ganhou em primeira e segunda instâncias. A prisão por cinco meses e dez dias aconteceu em 6 de julho de 2015.

Ele foi detido em sua casa e passou 40 dias em uma cela da 31a Delegacia da Vila Carrão. De lá, quando achava que ia ser solto – seu advogado impetrou dois habeas corpus –, foi transferido para o presídio de Tremembé (foto), no interior de São Paulo. Foi solto em dezembro de 2015. Quando ainda se encontrava no presídio, foi levado a São Paulo para depor em uma audiência de outro processo, este movido contra ele por Milton Neves. “Imagina o meu estado psicológico na audiência em que cheguei algemado e com roupa de preso”, recorda.

Esta segunda condenação com prisão foi provocada por uma crítica que fez ao vereador que deu o nome da mãe de Milton Neves a um logradouro público de São Paulo. Escreveu Paulinho: “Nada tenho contra a senhora em questão, a não ser a barrigada perdida, mas há que se esperar o mínimo de bom senso de um vereador na escolha de pessoas que devem ser muito relevantes para receber homenagem de tamanha magnitude”. Na queixa-crime, Neves disse que o termo “barrigada perdida” ofendia a honra de sua mãe. Paulinho foi condenado em primeira instância a quatro meses e 20 dias de prisão em regime semiaberto. Mas, como já se encontrava preso, o juiz autorizou que recorresse em liberdade. A prisão só viria a ser decretada depois que perdeu o recurso: o tribunal reduziu o tempo de reclusão para um mês e dez dias. Foi preso em 12 de novembro de 2018, levado para o Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), no centro de São Paulo, onde ficou nove dias dormindo no chão; de lá, foi transferido de novo para o presídio de Tremembé. Sua pena terminaria em 31 de dezembro, mas foi solto no dia 22, depois que sua advogada entrou com liminar junto ao Tribunal de Justiça de São Paulo.

* Lia Ribeiro Dias é jornalista e associada da APJor

Foto: Mário Rodrigues/VEJA SÃO PAULO

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