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Programa Diálogos & Provocações discute políticas de comunicação no Brasil

Na sua segunda edição, nesta terça-feira, 05/10, às 19h45, o Diálogos & Provocações, novo projeto da APJor, vai debater a questão das concessões de rádio e TV. Na primeira edição, o D&P tratou da ética no jornalismo. Veja na matéria de Mara Ribeiro

Por Mara Ribeiro*

Desde que Lula voltou a falar da necessidade de regulação das comunicações no Brasil (ver link ao final da matéria), vem crescendo o debate sobre esse tema tão importante. De um lado, a mídia corporativa rejeita liminarmente a ideia. De outro, multiplicam-se os pontos de vista sobre o que exatamente deve ser essa regulação.

Diálogos & Provocações (D&P), novo projeto da APJor, aborda o tema controverso nesta terça-feira, dia 5, às 19h45, reunindo três estudiosos do assunto:

  • Suzy Santos, diretora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora e pesquisadora, mestre e doutora em Políticas de Comunicação. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Políticas e Economia da Informação e da Comunicação (PEIC), o mais antigo grupo brasileiro de pesquisa em políticas da comunicação, em atividade desde 1995.
  • João Brant, diretor do Instituto Cultura e Democracia, mestre em Regulação e Políticas de Comunicação e doutor em Ciência Política. Integrante do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, fundador do Instituto Intervozes, atuou no governo federal de (2015-2016) e em instituições da sociedade civil em temas de cultura, liberdade de expressão, infraestrutura de telecomunicações e direitos da Internet.
  • e a mediadora Graça Caldas, referência para os estudos em Jornalismo. Com extensa atuação no mercado jornalístico e em pesquisa acadêmica, defendeu tese doutoral sobre as políticas de comunicação na era de Antônio Carlos Magalhães. Coordenou o curso de Jornalismo da Universidade Metodista de São Paulo, onde integrou o Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social por 14 anos.

Será certamente uma oportunidade para aprofundar esse debate e compreender a complexidade da questão, que vai muito além da falácia da mera “censura”, como quer a mídia corporativa (veja, no pé desta matéria, o link para inscrever-se e participar do programa). Esse é justamente o objetivo dos encontros mensais dos D&P, um projeto da APJor criado pelos associados Cris Spera (in memoriam), Caru Schwingel, Mara Ribeiro e Fábio Soares, com assessoria de Marlene Silva.

O projeto D&P pretende avançar em discussões sobre temas importantes para os jornalistas e o jornalismo, buscando bons interlocutores na academia, no mercado corporativo e no jornalismo independente. É também uma das ações da Campanha de Nacionalização da APJor, buscando atrair para a entidade novos associados bem articulados na profissão, que se interessem pela reflexão sobre ela. Com isso, visa a enriquecer o capital intelectual da APJor, uma entidade de inteligência e articulação, cuja principal meta é promover o debate nacional entre os jornalistas e com a sociedade civil sobre um foro próprio para discutir a profissão e sua prática – seja ele um conselho, um colégio ou uma ordem.

Ética é prática, não teoria

participantes do diálogos e provocações 01

Em 3 de agosto, o D&P estreou com três jornalistas importantes: o pesquisador Rogério Christofoletti, professor do programa ObjEthos, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); o superintendente de Comunicação Social da Universidade de São Paulo (USP), Luiz Roberto Serrano; e Ronaldo Matos, coordenador do coletivo Desenrola e não me enrola e do Centro de Mídia M’Boi Mirim, em São Paulo.

Com abertura pelo presidente da APJor, Fred Ghedini, e mediação da jornalista Juliana Teixeira, professora e pesquisadora da Universidade Federal do Piauí (UFPI), esse primeiro encontro abordou o estado-da-arte da ética no jornalismo. Cada um dos convidados fez uma breve exposição sobre o tema, seguida por perguntas escritas pelo público presente.

Como recomendou Ghedini ao abrir o evento, “os jornalistas precisam pensar sobre o jornalismo e as perspectivas de sua profissão”. No “terreno pantanoso” da ética, porém, como definiu Christofoletti, os jornalistas precisam ir além: devem “ampliar e discutir uma ética para a tomada de decisão cotidiana, diante dos dilemas éticos que surgem no dia a dia, das escolhas que precisam ser feitas e que são inadiáveis, numerosas e delicadas”. Não se trata, portanto, de abstração. “Ética não é teoria, é prática”, concluiu.

Christofoletti tem duas hipóteses para explicar quão “pantanoso” o assunto é no âmbito do jornalismo: “De um lado, estamos tratando das condutas dos colegas, o que é sempre muito delicado, e, de outro, supõe-se que a questão deveria ser tratada apenas sob o aspecto jurídico ou filosófico”, razão pela qual os professores dessa disciplina nos cursos de Jornalismo são padres, delegados e filósofos, não jornalistas. “Há cursos em que ela sequer existe no currículo”, disse o pesquisador. “Os jornalistas devem discutir as bases da deontologia de sua profissão e garantir seu espaço no debate“.

O especialista lamentou que, no Brasil e no exterior, haja pouca gente pesquisando e poucas publicações sobre o tema. “A literatura sobre ética no jornalismo ainda é escassa”, explicou. Mas algo está mudando no cenário: tem havido abertura para autores que não são anglo saxões e fóruns acadêmicos internacionais agora têm grupos de pesquisa em ética e direito da comunicação, além de ética geral e profissional. Esse é o caso da Associação Europeia de Pesquisa em Educação e Comunicação (ECREA, na sigla em inglês) e da Associação Internacional para Pesquisa em Mídia e Comunicação (IAMCR, na sigla em inglês).

Mas a melhor notícia é que o assunto está despertando um interesse natural nas novas gerações. “Ao estudar jornalismo digital”, disse Christofoletti, “os alunos estão se deparando com questões como privacidade e proteção de dados. Já na questão do direito à comunicação, começam a estudar a liberdade de expressão, o discurso do ódio e a desinformação. Esses estudantes estão regando o terreno para novas pesquisas.”

Juliana Teixeira, a mediadora, perguntou se é possível haver alguma solução para ter um jornalismo mais ético, como um socorro à democracia. “Não tem bala de prata”, respondeu Christofoletti. “Não há uma solução única, só se pode construir horizontes e parâmetros éticos, em um processo contínuo de construção.”

A perspectiva do mercado

Luiz Roberto Serrano abriu sua exposição com citações do jornalista Cláudio Abramo (1923-1987), um dos mais respeitados profissionais da imprensa brasileira: “O jornalismo é a prática diária da inteligência e o exercício cotidiano do caráter. (…)  Não existe uma ética específica do jornalista. A ética do jornalista é a mesma do cidadão. O que é ruim para o cidadão é ruim para o jornalista. (…) O que importa nessa relação é não trair a palavra dada. Não abusar da confiança do outro. Não pode mentir. Mas precisa ter opinião para ter opções e olhar o mundo da maneira que escolhermos”.

Ele também citou uma passagem de livro do próprio Christofoletti, Ética no Jornalismo (“O jornalismo é o irmão siamês da ética e tem como objetivo servir a sociedade”) e lembrou trechos de um artigo de sua autoria publicado aqui no site da APJor: “A liberdade de expressão é fundamental para a democracia, e o jornalismo é um de seus instrumentos ao noticiar, analisar, opinar e interpretar os fatos; onde não há jornalismo não há democracia”. Citou, ainda, os estudos de Maristela Fittipaldi, professora que trabalhou n’O Globo e que colocou a questão da ética diante de um desafio: “Caminhar sobre o movediço terreno da ética é mesmo uma tarefa de não poucos obstáculos, sobretudo numa era marcada pela quebra de fundamentos e paradigmas clássicos e pela irreversível entrada da sociedade na era digital, com todas as complicações que isto traz”.

“Se já era desafiante a prática da ética nas formas do jornalismo impresso, radiofônico e televisivo, quando os limites e os parâmetros da produção jornalística eram mais definidos, na era digital os limites se liquefizeram, levando de roldão até a própria definição de quem é jornalista”, refletiu Serrano. “O pressuposto do bom jornalista e do jornalismo ético é revelar a verdade dos fatos. É garimpar os fatos para chegar à verdade. A maioria de nós, jornalistas, não presencia o fato em sua integralidade. Na cobertura de futebol por exemplo, não sabemos o que acontece no vestiário, o que acontece nas conversas do juiz e do técnico, não temos acesso aos bastidores. Na maioria das vezes, para levantar os fatos, dependemos de depoimentos públicos ou do relacionamento com fontes confiáveis, que nos relatem o que não testemunhamos pessoalmente, e esse relacionamento envolve a ética.”

Serrano afirma que, como os jornalistas atuam em ambientes profissionais que podem ser de natureza privada, associativa ou financiada por fundações, precisarão conciliar a sua ética com a entidade que os emprega ou onde praticam o jornalismo. “Como levar adiante as nossas crenças, a nossa ética em ambiente X ou Y? Como fazer avançar os nossos valores? Pois ainda são raríssimos os casos de jornalistas que produzem individualmente. São minorias os que fazem parte de pequenas organizações, que estão ocupando um espaço enorme, o que é bom para o campo jornalístico”.

Constatou, ainda, que o circuito das notícias não é mais dominado pelas empresas clássicas do jornalismo: “Hoje, disputam o espaço as novas organizações digitais, como sites e blogs, e as fake news. Além dessa confusão, mais do que nunca, a rapidez no digital se impõe. O quanto isso prejudica a qualidade da apuração e multiplica os perigos de precipitação nos relatos, opiniões e interpretações? Sim, porque jornalismo não é apenas noticiar. É analisar, interpretar e opinar”.

A democratização das informações, possibilitada pela internet, também abriu espaço para uma enxurrada de notícias duvidosas, quando não falsas, e para a disseminação de opiniões de todos os tipos, algumas desrespeitosas, agressivas e violentas. “É nesse espaço conturbado que o jornalista tem o desafio de trafegar com ética, contar a verdade dos fatos ou se aproximar o mais possível da verdade”, concluiu, “convivendo e disputando com diversas opiniões empresariais, políticas e ideológicas, bem ou mal intencionadas, para ajudar a sociedade a avançar para um horizonte mais justo e democrático.”

A periferia e a ética jornalística

A ética no contexto do jornalismo de periferia foi o foco da exposição do terceiro convidado, o jornalista Ronaldo Matos, do Coletivo desenrola e não me enrola. Antes de qualquer pesquisa consolidar dados demográficos, anomalias sociais, mudanças políticas e culturais na maior parcela da população brasileira, que é a que mora em periferia ou favela, o jornalista de periferia e favela já acompanhou tudo isso, disse Matos. “Temos esse privilégio de estar à frente da sociedade como um todo”, explicou. “Quando você mora num bairro como o meu, onde 300 mil pessoas residem, pode comunicar, produzir informações, entrevistar uma massa de pessoas, contar suas histórias. Estamos falando de um jornalismo de cidade, mas que tem esses aglomerados urbanos, e não só em São Paulo.”

“Vale a pena ressaltar que esse jornalismo [de periferia] que temos hoje, em 2021, é fruto de um processo de luta de pessoas que fizeram e fazem muita ação social, lutaram por políticas públicas”, relatou. “Existe uma ação cultural e é essa transformação social que impacta essa grande massa de moradores, que gerou o caldo cultural que hoje alimenta o meu jeito de enxergar o mundo. Sou um jornalista, sim, mas que não olha apenas para esse tempo do agora. Eu olho o passado, avalio o presente e penso perspectivas para o futuro com minhas fontes, meus personagens, com as histórias que conto.”

Ao falar sobre ética nesse contexto, Matos lembra que, do ponto de vista do mercado, do mundo empresarial, “pessoas pretas e periféricas são aquelas que não têm perspectiva, não têm futuro”: “Eu moro no Jardim Ângela, que já foi considerado o local mais violento do mundo e faço um jornalismo periférico e de favela. Sempre me perguntei: para onde vai, onde vai parar? Ao ganhar corpo, esse jornalismo transcendeu o Brasil, é reconhecido na América Latina e apontado pelo Google News como uma das iniciativas mais inovadoras. Acabamos de lançar uma plataforma de distribuição de notícias que vai impactar o Brasil, o Território da notícia.

Ele também percebe que todo esse movimento que está acontecendo nas periferias demonstra que estão se tornando um produto. Comentou sobre um projeto recente, o Estadão na Perifa, iniciativa do diário O Estado de S. Paulo, cuja redação não tem um único morador da periferia. “Eles não estão andando nos becos e vielas das cidades”, disse Matos. “Eu pergunto: qual é a qualidade desse produto? Estão preocupados em informar o leitor criticamente ou em trazer temas que o Estadão não aborda no seu cotidiano? Ou, ainda, tem uma roupagem empresarial, apenas com propósito comercial, já que é patrocinado pela 99 Táxi?”

Para Matos, trata-se de uma apropriação cultural com características de descompromisso com sua audiência: “Essa cooptação do capital ganha força e transforma lutas em produto. O tema periferia se tornou um serviço, não uma pauta primordial. Assim, a face do jornalismo é transformar a narrativa da favela em algo rentável. Não pretende resolver questões da comunidade”.

A segunda dimensão apontada por Matos atravessa o eixo da academia. “A produção de conhecimento ao longo da história tem poucas referências pretas”, lembrou. “Quando penso em jornalistas pretos, tem menos ainda. Há, portanto, uma produção acadêmica branca e eurocêntrica. Como teses de mestrado e doutorado sobre o assunto não acontecem sem uma entrevista comigo, por exemplo, percebo aí a mesma cooptação da periferia como produto. Ficou claro, nas inúmeras entrevistas que concedi a pesquisadores, que meu protagonismo tem limite. Não consigo alcançar a academia como pesquisador e professor. O que me dizem é que essa linha de pesquisa não serve para essa ou aquela universidade pública, que é muito elitizada. Mas serve para escutar, para sistematizar conhecimento e para me alienar da produção desse conhecimento. ‘Você é legal, mas fica na sua.’ Problema ético pesado nesse processo.”

Sobre o contexto profissional desse jornalista periférico, Matos afirmou: “A gente tem uma motivação ética muito grande para transformar os moradores de periferia e de favela em fontes, em formadores de opinião, em novos personagens, que vão fazer outra leitura desse mudo e desse país. Historicamente, esses personagens não têm comida no prato ou tiveram o filho assassinado pela polícia, mas alguns deles conseguiram se superar e entrar na universidade ou fizeram algo muito diferente em suas comunidades”.

Para ele, as mídias tradicionais têm “um recorte classista de fontes, um recorte geográfico, racial e de lugar”: “Seus repórteres formaram-se, trabalham e moram em bairros distantes das periferias. Portanto, elas não produzem experiência concreta da transformação na vida nesses territórios urbanos e culturais. Como profissional, venho observando uma certa resistência dos grandes veículos a diversificar suas fontes de informação. Ao invés de trazer o especialista da USP, deveria ouvir o cara que está instalando energia solar no Capão Redondo. Quem forma a opinião do cidadão brasileiro está pouco comprometido com isso”.

Ao responder a mesma pergunta feita pela mediadora a Christofoletti e Serrano, sobre a possibilidade de solução para um jornalismo mais ético, como um socorro à democracia, Matos lembrou que quase 90% da população brasileira usa celular para acessar a internet. “O celular é, portanto, o principal meio de acesso às redes, principalmente nas periferias, como demonstram as pesquisas da Fundação SEADE no estado de São Paulo”, explicou. “Então, como essa população usa as redes para se comunicar e para receber informações? Essa galera não tem condições de distinguir o que é informação falsa. Eu sei que a Exame, por exemplo, é do BTG Pactual, portanto, os conteúdos que publica refletem os interesses desse grupo financeiro.”

Matos concordou com Serrano, para quem “o letramento e a alfabetização podem produzir pessoas mais preparadas para compreender as coisas com mais clareza”. Mas foi além: “Há uma mudança de panorama. A educação midiática tem que ir para a escola. No nosso projeto, estamos despertando os jovens para fazer uma mudança estrutural de pensamento”.

* Mara Ribeiro é jornalista e diretora da APJor

Para saber mais:

Inscrições para o D&P nº 2: Políticas de Comunicação – a questão das concessões

Lula pressiona PT a retomar debate sobre regulação da mídia

Ética no jornalismo: íntegra do D&P nº 1 no canal da APJor no YouTube

Associação Internacional para Pesquisa em Mídia e Comunicação (IAMCR)

Associação Europeia de Pesquisa em Educação e Comunicação (ECREA)

Livro de Christofoletti: Ética no Jornalismo

Artigo de Serrano: Jornalismo e democracia são sinônimos

Coletivo e nova plataforma de Matos: Desenrola e não enrola e Território da notícia

Pesquisas da Fundação Seade sobre o uso do celular para acesso à internet

APJor

APJor

A Associação Profissão Jornalista (APJor) é uma organização sem fins lucrativos, criada em 2016 por um grupo de 40 jornalistas, com o objetivo de defender o jornalismo ético e plural e valorizar o papel do jornalista profissional na sociedade brasileira.