Por Cibele Buoro
O Projeto de Lei das fake news, ou Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, não faz uma distinção clara entre quem produz, financia e permite a propagação de notícias falsas de forma consciente e dolosa nas redes sociais, daqueles que simplesmente compartilham por estarem mal informados, avalia o advogado criminalista, fundador do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), conselheiro da Human Rights Watch e comentarista da CNN Brasil, Augusto de Arruda Botelho.
O mais perigoso, para ele, no entanto, é a rapidez com que o PL foi aprovado no Senado, sem a participação da sociedade civil, o que compromete a sua finalidade. Botelho teme ainda que possam ser imputados crimes a jornalistas, caso os deputados retomem a discussão dos tipos penais, que foram excluídos da versão aprovada no Senado.
Leia a entrevista completa:
APJor – A considerar a avaliação jurídica que você faz do projeto de lei contra as fake news, que perigos podem ser detectados nessa versão que segue para a Câmara dos Deputados?
Augusto de Arruda Botelho – Há uma necessidade evidente de coibir as informações sabidamente falsas em vários campos, principalmente no eleitoral e é isso que fundamenta o Projeto de Lei das Fake News. Portanto, a discussão de uma lei prevendo, punindo, regulando e moderando para garantir mais transparência para as redes sociais, é positiva. O que se revela inicialmente muito perigoso neste projeto, primeiro, é a rapidez com que ele foi discutido pelos parlamentares sem a participação de especialistas, da sociedade civil, seja por meio de audiências públicas ou qualquer outro formato. É um projeto que, em pouquíssimo tempo, trouxe diversas alterações no relatório inicial, quatro em onze dias, o que é um tempo muito rápido e, mais uma vez, no meio de uma pandemia, com sessões virtuais entre parlamentares, o que limita muito o debate, pelos empecilhos dessa forma de comunicação.
APJor – Quanto ao trabalho dos jornalistas, o PL apresenta riscos para esses profissionais, como a imputação de crimes?
AAB – A criminalização de conduta foi excluída já no relatório aprovado pelo Senado e isso é um ponto positivo. Também não há previsão de criação de qualquer figura típica penal para quem, de alguma forma, incorrer em determinadas condutas. Mas havia sim, na redação de um dos relatórios, a inserção dos tipos penais considerados pelo Direito como “muito abertos”, por permitirem uma interpretação particular de quem quer que os aplique, o que é muito perigoso porque cria uma insegurança jurídica e um possível mau uso do tipo penal. Na versão do PL que segue para a Câmara não há nenhuma previsão de crime por tipificação penal. Mas nada impede que isso não volte. Essa discussão não está de forma alguma adormecida ou esquecida, por isso, volto a dizer que nada impede que haja uma proposta de inclusão de tipificação de algumas condutas e, se isso acontecer, aí sim será um perigo para todos nós, inclusive para jornalistas porque, de certa forma, com tipos muito abertos, cria-se uma insegurança para aquele que se manifesta e uma insegurança para o princípio constitucional da liberdade de expressão que é tão importante. Então, da forma como está o projeto agora, do ponto de vista criminal, eu não vejo nenhum problema neste momento, mas nada impede que isso apareça lá na frente.
APJor – Quais eram os tipos penais e por que foram retirados do PL?
AAB – Eram tipos penais muito semelhantes aos crimes contra a honra, mas com algumas peculiaridades, o que revelou ser desnecessária a intervenção do Direito Penal em dois aspectos: o primeiro deles é quando outras formas menos invasivas vão trazer um efeito semelhante àquele que o tipo penal prevê. Então não adianta criminalizar uma conduta que, em outras esferas do Direito menos invasivas, você tem como punir, seja por multa, ação de indenização ou qualquer outro tipo de ação. O Direito Penal deve ser a ultima ratio (último recurso), que parte do princípio da intervenção mínima da justiça, que só deve entrar em campo quando nenhuma outra forma de dirimir um conflito foi satisfatória. E o segundo ponto é quando se criam novos tipos penais que, de certa forma, já estão abarcados na legislação. Portanto, criar um tipo específico de crime contra a honra no contexto de fake news é redundante, porque já existe o tipo penal. Se uma pessoa criou uma fake news para injuriar alguém, há o crime de injúria. Para quem caluniou, se aplica o crime de calúnia. Sobre o motivo disso ter caído, não faço a mínima ideia. Foi uma negociação entre as bancadas de parlamentares. Não foi nem uma votação, mas uma negociação de bancada.
APJor – Na sua avaliação, o PL define com clareza o que é uma notícia falsa?
AAB – Eu tenho uma posição pessoal sobre esse assunto. Ao invés de definir o que é notícia falsa, o PL deveria focar mais naqueles que produzem, financiam e permitem a propagação das fake news de forma consciente e dolosa. Acho que é essa a definição que precisa ficar bastante clara para que não se puna eventualmente aquela pessoa mal informada. Por exemplo, há um trecho do projeto de lei que é extremamente delicado, que pede que aplicativos de comunicação instantânea mantenham, em suas bases de dados, conversas trocadas por aplicativos entre pessoas. A justificativa desse pedido é que, seguindo a cadeia de encaminhamento dessas mensagens, se chegaria ao autor original, o primeiro que propagou a notícia falsa. Bem, primeiro, esse armazenamento prévio de dados de comunicação desrespeitaria uma série de garantias fundamentais.
APJor – A eficiência do projeto depende da atenção dada a quem produz propositalmente notícias falsas, então…
AAB – O correto seria diferenciar quem produz uma notícia sabidamente falsa com o fim de prejudicar alguém e aquele mal informado que recebe no grupo de whatsapp alguma informação e compartilha com outras pessoas. O projeto de lei considera que quem repassar a mesma mensagem para cinco contatos no período de 15 dias estará sujeito a ter a sua mensagem armazenada e suscetível a uma ordem judicial para apurar de onde veio. Vamos imaginar uma coisa bem comum. Se eu printar alguma informação das redes e divulgá-la em grupos de whatsapp dos quais participo, e esse print for encaminhado para milhares de pessoas, quem divulgou primeiro fui eu, mas eu não produzi a mensagem. Esse ato será considerado fake news? Há quem compartilhe por ser mal informado, sem ter produzido a notícia falsa. No PL, essa distinção está mal elaborada.
APJor – Sobre a exigência de identificação que o PL propõe, você enxerga algum risco para jornalistas, ativistas de direitos humanos, ambientalistas?
AAB – A atual versão melhorou muito se comparada ao projeto original. Além da apresentação de documento para ter uma conta em rede social, era exigido uma linha de telefone celular habilitado, que foi excluído. É um avanço importante, mas está mantida a necessidade da identificação por documento, como carteira de motorista, passaporte ou identidade. É um dilema, porque sabemos que muitas notícias falsas e campanhas de ódio ou de viés político são feitas por meio de contas falsas ou anônimas, enquanto a Constituição Federal garante a liberdade de expressão, mas não autoriza o anonimato. Portanto, estamos diante de uma ponderação difícil. Como se garante a previsão de liberdade sendo vetado o anonimato nas redes sociais, que não criam nenhum critério para abertura de uma conta? Por outro lado, como proteger pessoas que, eventualmente, por questões de segurança ou pessoais, precisam desse anonimato, ou pelo menos, não necessariamente desse anonimato, mas de uma segurança maior para a garantia de sua identidade, apenas divulgada por ordem judicial? Esse é o tipo de assunto que carece uma discussão maior e o PL não foi profundo o suficiente para discutir. Eu, sinceramente, vejo que há argumentos válidos dos dois lados. Mas não dá para ter uma definição com tão pouca discussão.
APJor – Outro ponto que merece debate é quem vai julgar o que é ou não é notícia falsa, uma vez que as agências de checagem podem ter por trás um financiador interessado em prejudicar determinados veículos de imprensa, como os sites independentes, ou blogs de jornalistas que incomodem políticos e empresas. Você vê algum perigo sobre essa questão Augusto?
AAB – Eu vejo como um perigo da forma como está hoje. O projeto tenta trazer o mínimo de transparência pela moderação feita pelas plataformas. Do jeito que está hoje, quem faz a moderação são robôs, por meio de palavras-chave, que acionam mecanismos de inteligência artificial. Dessa forma, conteúdos são vetados, contas são bloqueadas, ou seja, tudo com pouca transparência. Pela leitura que eu faço do PL, ao menos haverá uma transparência, já que os portais terão de divulgar semestralmente os relatórios, justificar o motivo da moderação e a quantidade de pessoas moderadas. Isso é necessário que se faça para que usuários, de um lado ou de outro, não corram o risco de serem cerceados em sua liberdade de expressão sem saberem o porquê.
*Cibele Buoro é jornalista e associada da APJor
Foto: Connor Danylenko, no Pexels