Por Lia Ribeiro Dias*
O jornal diário Primeira Hora, que circulou em Armação de Búzios (RJ) e cidades vizinhas de 2006 a 2015, acumulou 26 ações judiciais por crimes de opinião, muitas movidas por integrantes do Judiciário. O advogado Ruy Borba, um de seus sócios e colunistas, amealhou vários processos cíveis e criminais, alguns ainda em andamento, teve cinco mandados de prisão, três dos quais executados, e entrou com um processo de suspeição contra o juiz Marcelo Alberto Chaves Villas, da 2a Vara da Comarca de Armação de Búzios, no TJ-RJ e no Conselho Nacional de Justiça, para que fosse afastado de suas funções por parcialidade em suas decisões. O juiz foi declarado suspeito por decisões do STF e do CNJ.
Asfixiado pela artilharia judicial e pedidos de indenização, o Primeira Hora, que chegou a tirar 5 mil exemplares diários, não sobreviveu. Tampouco sobreviveu a Fundação Bem Te Vi, criada também por Borba para atender crianças e jovens em estado de vulnerabilidade social, na qual ele investiu 80% do seu patrimônio (US$ 50 milhões). A Prefeitura pediu a desapropriação da área de 145 mil metros quadrados com 7 mil metros quadrados de edificações e recebeu a posse precária, em ação de tramitação recorde, em março de 2013, propondo uma indenização de R$ 500 mil para um terreno avaliado, segundo Borba, em R$ 15 milhões.
Antes de aportar em Armação de Búzios, em 2000, para desenvolver o projeto de seus sonhos, a Fundação Bem Te Vi, o advogado gaúcho, formado para Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e com especialização na Alemanha, militou na banca, ocupou cargos públicos no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e no governo federal, entre o início dos anos 1970 e meados de 1980. Mas foi no mercado financeiro, em São Paulo, que construiu boa parte da fortuna que investiu na Bem Te Vi.
Foi em Búzios que ganhou o gosto pelo jornalismo. De entrevistado constante da rádio local, passou a colunista. E quis ir além: com uma jornalista que também trabalhava na rádio, criou o Primeiro Hora para ser um jornal que produzisse reportagens e não se limitasse a divulgar releases. Foi aí que esbarrou no juiz Villas e sua esposa, a também juíza Alessandra Camargo de Souza, na juíza Maria Valéria Veiga de Oliveira (ele também pediu, e conseguiu, sua suspeição em um processo) e em outros integrantes do Judiciário e do Ministério Público, que o acusam, como testemunhas em uma ação, de ser um litigante contumaz e usar o jornal para pressionar os magistrados e coagi-los.
As ações começaram em 2012, depois que Villas assumiu a 2a Vara e teve procedimentos relacionados à Justiça Eleitoral questionados pelo Primeira Hora. Se Borba e sua equipe foram objeto de muitas ações por danos morais, ele foi também autor de pelo menos três ações por calúnia e difamação. Duas queixas-crime contra Marcelo Lartingue e outros, do tabloide Peru Molhado, referentes a matérias publicadas em 2011, e uma contra Elizabeth Prata e Aleteia Torres, de O Sol de Búzios, por matéria publicada em 2012. Em 2014, todos os processos encontravam-se parados no Juizado Criminal Especial de Búzios, vinculado à 2a Vara comandada então por Villas.
Só em duas ações por crime de opinião, uma movida pela juíza Alessandra Camargo de Souza e outra por um policial, julgadas pelo juiz Villas, Borba foi condenado a indenizações (valores corrigidos) de cerca de R$ 1 milhão. A condenação na segunda ação, da ordem de R$ 600 mil, ainda está em discussão por ação constitucional no STJ.
Suspeição do juiz
Na reclamação disciplinar ao CNJ contra o juiz Villas, os advogados Aroldo Camillo Filho e Iuri Camillo afirmam que o juiz vem atuando de forma parcial nos processos envolvendo Borba, promovendo uma verdadeira perseguição ao advogado e jornalista, sem observar seus direitos e garantias “seja na prolação de decisões teratológicas em seu desfavor, seja pelo constante atropelo do devido processo legal”.
Como parte de sua estratégia de perseguição, o dossiê descreve que o juiz, mesmo sendo uma suposta vítima de pedido apresentado por Borba de investigação sobre ameaça anônima recebida, recusa-se a se dar por suspeito. Mais: impôs multas por litigância de má-fé aos advogados que patrocinaram as execuções de exceção. E usa o recurso de vazar ao tabloide Peru Molhado informações e decisões de processos que envolvem o advogado e jornalista, mesmo antes de sua publicação oficial.
As páginas do Peru Molhado, como mostra a lista de matérias arroladas na reclamação disciplinar, também serviram para publicar denúncias contra a Fundação Bem Te Vi sobre suspeita de uso irregular de dinheiro público e para estampar ação por crime ambiental contra Borba e outros agentes públicos, quando ele ocupava o cargo de secretário do Planejamento do município. Mesmo sendo figura coadjuvante no processo (assinou a licença depois de sua aprovação pelas secretarias de Meio Ambiente, Finanças e Obras), a ação foi desmembrada até que ele terminou sozinho.
Um bom exemplo do ativismo judicial conduzido na Comarca de Armação de Búzios por juízes, promotores e advogados próximos é o fato de todas as 26 ações por danos morais contra o Primeira Hora, seu dono e seus jornalistas terem sido representadas por um único advogado, Fernando Christian Brandão (advogado dos juízes de Búzios à época). Diz Borba que ele chegou a publicar anúncio oferecendo patrocínio gratuito para ações contra si: “Eu apresentei representação contra ele na OAB, mas não deu em nada”.
Condenado em muitos processos em primeira instância (chegou a ficar 30 dias preso na Penitenciária de Bangu e cumpriu prisão domiciliar de um ano por decisão de primeira instância), Borba foi absolvido em segunda instância de várias acusações ou teve sua pena reduzida. Algumas ações ainda estão em andamento – até hoje discute na Justiça o valor da indenização do terreno da Fundação Bem Te Vi e uma condenação no STJ por crime de opinião.
Aos 74 anos, com problemas de saúde decorrentes de sequelas da contaminação pelo coronavírus no ano passado, Borba conta que sua experiência como dono de jornal e colunista o fez perceber como juízes e promotores “usam as mídias para criar um juízo paralelo”, especialmente nas cidades menores, onde jornais e rádios não têm capacidade de investigação e vivem da versão oficial dos press releases. Cético em relação ao Judiciário e crítico da falta de controle social do Ministério Público, diz que toda a estrutura precisa ser refundada.
* Lia Ribeiro Dias é jornalista e associada da APJor. Colaborou Adriana do Amaral, também jornalista e associada da APJor.
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