Por Fred Ghedini e Leda Beck
Bill Kovach e Tom Rosenstiel, dois jornalistas dos Estados Unidos, sistematizaram três anos de entrevistas, estudos e rodas de conversa ligados à imprensa naquele país. Esse trabalho resultou no livro Os Elementos do Jornalismo – O que os jornalistas devem saber e o público exigir, publicado em 2001 naquele país e em 2003 no Brasil.
Kovach e Rosenstiel participaram do Committee of Concerned Journalists (CCJ), um consórcio de repórteres, editores, produtores, editores, proprietários de jornais e acadêmicos, que atuou como facilitador de todo o processo de debates e estudos.
No prefácio à segunda edição brasileira (2004), Fernando Rodrigues resume o processo que deu origem ao livro: “Os Elementos do Jornalismo ficou pronto depois da realização de 21 fóruns aos quais compareceram mais de três mil pessoas. Foram tomados os depoimentos de 300 jornalistas. Uma equipe de pesquisadores universitários gravou 103 horas de entrevistas com jornalistas a respeito dos valores da profissão”.
As entrevistas e reuniões começaram em 1997. Os autores sistematizam o que chamaram de “uma descrição da teoria e cultura do jornalismo que emergiu de três anos ouvindo jornalistas e cidadãos, dos nossos estudos empíricos e das nossas leituras da história da profissão nos Estados Unidos”, sob nove princípios com os quais os jornalistas concordam – e os cidadãos têm o direito de exigir. Anos depois, os autores acrescentaram um décimo elemento.
O jornalismo sobreviverá?
O jornalista sobreviverá aos desafios da imprensa nas sociedades democráticas do século XXI? No final do prefácio, Kovach e Rosenstiel afirmam: “A resposta dependerá da lucidez e convicção dos jornalistas para articular o significado de uma imprensa livre e, como cidadãos, dependerá de realmente nos preocuparmos com isso”.
Os debates organizados pelo CCJ, não pararam depois da publicação do livro. Anos depois de publicado o livro nos EUA, um décimo elemento – resultado das mudanças sofridas pelo jornalismo sob a revolução digital – foi acrescentado aos nove existentes até então, que contam do livro.
Em 2007, Walter Dean, ex-diretor de treinamento do CCJ, resumiu os nove elementos acrescentando o décimo elemento surgido posteriormente. É um dos documentos que constam do portal do Instituto Americano de Imprensa (API, na sigla em inglês).
No seu conjunto, os 10 elementos do jornalismo sintetizam a cultura jornalística de um grande número de profissionais nos EUA.
Os elementos do jornalismo*
1. A primeira obrigação do jornalismo é com a verdade
Uma boa tomada de decisão depende de informações confiáveis e precisas sobre fatos devidamente contextualizadas, para que façam sentido. O jornalismo não busca a verdade em um sentido absoluto ou filosófico, mas em um sentido mais voltado para a realidade do dia a dia.
“Todas as verdades – mesmo as leis da ciência – estão sujeitas a revisão, mas operamos por elas porque são necessárias e funcionam”, escrevem Kovach e Rosenstiel. O jornalismo, eles continuam, busca assim “uma forma prática e funcional da verdade”. Não é a verdade no sentido absoluto, filosófico ou científico, mas sim uma busca das “verdades pelas quais podemos operar no dia-a-dia.”
Essa “verdade jornalística” é um processo que começa com a disciplina profissional de reunir e verificar fatos. Em seguida, os jornalistas tentam transmitir um relato justo e confiável do que foi apurado, sujeito a uma investigação mais aprofundada.
Os jornalistas devem ser o mais transparentes possível sobre fontes e métodos para que o público possa fazer sua própria avaliação da informação. Mesmo em um mundo de vozes em expansão, ser o mais fiel possível aos acontecimentos é a base sobre a qual tudo o mais é construído – contexto, interpretação, comentário, crítica, análise e debate. A verdade maior, com o tempo, surge desse fórum.
Como os cidadãos encontram um fluxo cada vez maior de dados, eles têm mais necessidade – e não menos – de fornecedores de informações dedicados a encontrar, verificar e contextualizar as notícias.
2. Sua primeira lealdade é com os cidadãos
O editor de jornalismo – seja uma empresa de mídia que responda a anunciantes e acionistas ou um blogueiro com suas próprias crenças e prioridades pessoais – deve mostrar uma fidelidade final aos cidadãos. Eles devem se esforçar para colocar o interesse público – e a verdade – acima de seus próprios interesses ou suposições.
Um compromisso com os cidadãos é uma aliança implícita com o público e uma base do modelo de negócios jornalístico – o jornalismo apresentado “sem medo ou favor” é percebido como mais valioso do que o conteúdo de outras fontes de informação.
Compromisso com os cidadãos também significa que o jornalismo deve procurar apresentar uma imagem representativa dos grupos constituintes da sociedade. Ignorar certos cidadãos tem o efeito de privá-los da informação jornalística.
A teoria subjacente à indústria moderna de notícias tem sido a crença de que a credibilidade cria um público amplo e leal e que o sucesso econômico é um resultado desse processo. Nesse sentido, os empresários de uma organização de notícias também devem nutrir – e não explorar – sua lealdade ao público antes de outras considerações.
A tecnologia pode mudar, mas a confiança – quando conquistada e nutrida – perdurará.
3. Sua essência é uma disciplina de verificação
Os jornalistas contam com uma disciplina profissional para verificar as informações.
Embora não exista um código padronizado como tal, todo jornalista usa certos métodos para avaliar e testar as informações para “acertar”.
Ser imparcial ou neutro não é um princípio central do jornalismo. Como o jornalista precisa tomar decisões, ele não é e não pode ser objetivo. Mas os métodos jornalísticos são objetivos.
Quando o conceito de objetividade evoluiu originalmente, isso não implicava que os jornalistas estivessem livres de preconceitos. Pedia, em vez disso, um método consistente de testar informações – uma abordagem transparente às evidências – precisamente para que preconceitos pessoais e culturais não minassem a precisão do trabalho. O método é objetivo, não o jornalista.
Procurar várias testemunhas, divulgar o máximo possível sobre fontes ou pedir comentários a vários lados, tudo indica tais padrões. Essa disciplina de verificação é o que separa o jornalismo de outras formas de comunicação, como propaganda, publicidade, ficção ou entretenimento.
4. Seus praticantes devem manter uma independência daqueles que cobrem
A independência é uma pedra angular da confiabilidade.
Num primeiro nível, independência significa não ser seduzido por fontes, intimidado pelo poder ou comprometido pelo interesse próprio. Em um nível mais profundo, independência quer dizer ter a mente aberta e a curiosidade intelectual que ajudam a enxergar além de sua própria classe ou status econômico do jornalista, além da raça, etnia, religião, gênero ou mesmo do próprio ego.
Independência jornalística, escrevem Kovach e Rosenstiel, não é neutralidade. Embora os editorialistas e comentaristas não sejam neutros, a fonte de sua credibilidade ainda é sua precisão, justiça intelectual e capacidade de informar – e não sua devoção a um determinado grupo ou resultado. Em sua independência, no entanto, os jornalistas devem evitar a arrogância, o elitismo, o isolamento ou o niilismo.
5. O jornalista deve servir como um monitor independente do poder
O jornalismo tem uma capacidade incomum para fiscalizar aqueles cujo poder e posição mais afetam os cidadãos. Também pode oferecer voz aos que não têm voz. Ser um monitor independente do poder significa “vigiar os poucos poderosos da sociedade em nome de muitos para se protegerem da tirania”, escrevem Kovach e Rosenstiel.
“Os primeiros jornalistas estabeleceram firmemente como princípio básico sua responsabilidade de examinar os cantos invisíveis da sociedade.”
O papel de fiscalizador é muitas vezes confundido – até mesmo pelos jornalistas – com “afligir os confortáveis”. Embora incomodar possa certamente ser resultado do jornalismo de fiscalização, o conceito introduzido em meados do século 17 foi muito menos combativo. Apenas procurou redefinir o papel do jornalista de estenógrafo passivo para observador curioso que “pesquisava e descobria as notícias”.
O papel de fiscalizador também significa mais do que simplesmente monitorar o governo. “Os primeiros jornalistas”, escrevem Kovach e Rosenstiel, “firmemente estabeleceram como princípio básico sua responsabilidade de examinar os cantos invisíveis da sociedade. O mundo que eles criaram capturou a imaginação de uma sociedade amplamente desinformada, angariando rapidamente seguidores populares e entusiasmados.”
Finalmente, o objetivo do cão de guarda se estende além de simplesmente tornar transparente o gerenciamento e a execução do poder, tornando conhecidos e compreendidos os efeitos desse poder. Isso inclui relatórios sobre sucessos e falhas.
Os jornalistas têm a obrigação de proteger essa liberdade de observador, não a menosprezando em uso frívolo ou explorando-a para obter ganhos comerciais.
6. O jornalista deve abrir espaço para a crítica e o compromisso público
Os meios de comunicação são portadores comuns da discussão pública, e essa responsabilidade forma uma base para privilégios especiais que os provedores de notícias e informações recebem das sociedades democráticas.
Esses privilégios podem envolver subsídios para distribuição ou pesquisa e desenvolvimento (taxas postais mais baixas para impressos, uso do espectro público pelas emissoras, desenvolvimento e gerenciamento da internet) a leis que protegem conteúdo e liberdade de expressão (leis de direitos autorais, difamação e sigilo da fonte).
Esses privilégios, no entanto, não são pré-ordenados ou perpétuos. Em vez disso, são conferidos aos jornalistas devido à necessidade de um suprimento abundante de informações. Eles se baseiam na suposição de que o jornalismo – por causa de seus princípios e práticas – fornecerá um fluxo constante de conteúdo de maior qualidade que os cidadãos e o governo usarão para tomar decisões melhores.
Tradicionalmente, esse pacto é entre organizações de notícias e governo. As novas formas de mídia digital, no entanto, atribuem uma responsabilidade a todos que “publicam” conteúdo – seja para lucro ou para satisfação pessoal – no domínio público.
A matéria-prima lançada no mercado de ideias sustenta o diálogo cívico e serve melhor a sociedade quando consiste em informações verificadas, em vez de apenas preconceitos e suposições.
O jornalismo também deve tentar representar de maneira justa os pontos de vista e interesses variados na sociedade e colocá-los nos seus devidos contextos, em vez de destacar apenas as margens conflitantes do debate. A precisão e a veracidade também exigem que a discussão pública não negligencie pontos comuns ou casos em que os problemas não são apenas identificados, mas também resolvidos.
Jornalismo, portanto, vai além de fornecer um espaço para debates ou acrescentar mais uma voz à conversa. O jornalismo tem a responsabilidade de melhorar a qualidade do debate, fornecendo informações verificadas e rigor intelectual. Um fórum que não leve em consideração os fatos deixa de informar e degrada, em vez de melhorar, a qualidade e a eficácia da tomada de decisões dos cidadãos.
7. O jornalista deve se empenhar para apresentar a informação de forma interessante e relevante
Jornalismo é contar histórias com um propósito. Deve fazer mais do que reunir uma audiência ou catalogar o importante. Deve equilibrar o que os leitores sabem que querem com o que não podem prever, mas de que precisam.
Roy Peter Clark e Chip Scanlan que trabalham com o aprimoramento da redação de jornalistas, descrevem a redação eficaz como a interseção da clareza cívica, da informação que os cidadãos precisam para funcionar e da graça literária, que é o conjunto de habilidades do repórter para contar histórias. Em outras palavras, parte da responsabilidade do jornalista é fornecer informações de maneira que as pessoas se inclinem a ouvir. Assim, os jornalistas devem se esforçar para tornar interessante e relevante aquilo que é significativo.
A qualidade é medida seja pelo envolvimento do público, seja pelo quanto ilumina a mente das pessoas. Isso significa que os jornalistas devem perguntar continuamente quais informações têm mais valor para os cidadãos e de que forma as pessoas têm maior probabilidade de assimilá-las. Embora o jornalismo deva ir além de tópicos como governo e segurança pública, o jornalismo dominado por trivialidades e falsos significados banaliza o diálogo cívico e, portanto, as políticas públicas.
8. O jornalista deve apresentar as notícias de forma compreensível e proporcional
O jornalismo é a nossa cartografia moderna. Cria um mapa para os cidadãos navegarem na sociedade.
Como em qualquer mapa, seu valor depende de uma integralidade e proporcionalidade em que o relevante recebe maior visibilidade do que o trivial.
Manter as notícias em proporção é a pedra angular da veracidade. Inflar eventos por sensacionalismo, negligenciar outros, estereotipar ou ser desproporcionalmente negativo, tudo isso torna um mapa menos confiável. Os mapas mais abrangentes incluem todas as comunidades afetadas, não apenas aquelas com dados demográficos atraentes. As histórias mais completas levam em conta a diversidade em suas origens e perspectivas.
Embora a proporção e a abrangência sejam subjetivas, é um erro não levá-las em conta.
9. Os jornalistas devem ser livres para trabalhar de acordo com sua consciência
Fazer jornalismo, seja como redator profissional de uma organização de notícias ou como colaborador online no espaço público, envolve a bússola moral da pessoa e exige um senso pessoal de ética e responsabilidade.
Como as “notícias” são importantes, aqueles que divulgam as notícias têm a responsabilidade de expressar sua consciência pessoal em voz alta e permitir que outros o façam também. Eles devem estar dispostos a questionar seu próprio trabalho e a diferir do trabalho de outros, se a justiça e a precisão exigirem.
As organizações de notícias fazem bem em nutrir essa independência, incentivando as pessoas a falarem o que pensam. Conversas e debates estimulam a diversidade intelectual de mentes e vozes necessárias para entender e cobrir com precisão uma sociedade cada vez mais diversificada. Não basta ter uma redação diversificada. É preciso que as diferentes vozes sejam ouvidas.
É também uma questão de interesse próprio dos editores. Incentivados a levantar a mão, jornalistas empregados podem “salvar o chefe de si mesmo” ou proteger a reputação da organização de notícias, apontando erros, sinalizando omissões importantes, questionando suposições equivocadas ou até mesmo revelando irregularidades.
Ter um senso de ética talvez seja mais importante ainda para o jornalista ou colaborador online.
Cada vez mais, quem produz “as notícias” trabalha isoladamente, seja nas baias da redação, na cena de uma reportagem ou em seu escritório em casa. Essas pessoas podem enviar seu material diretamente ao público, sem a rede de segurança da edição, sem um segundo par de olhos ou a colaboração de outros. Embora a participação do público possa detectar e corrigir equívocos ou informações erradas, a reputação do autor e a qualidade do diálogo público saem prejudicadas.
10. Em se tratando de notícias, agora os cidadãos também têm direitos e responsabilidades
Hoje, a pessoa comum, mais do que nunca, trabalha como jornalista.
Escrever uma postagem ou comentário no blog, comentar numa rede social, enviar um tuíte ou curtir uma foto ou postagem provavelmente envolve uma versão abreviada do processo jornalístico. Uma pessoa encontra informações, decide se é crível ou não, avalia suas forças e fraquezas, determina se tem valor para os outros, decide o que ignorar e o que repassar, escolhe a melhor maneira de compartilhá-las e depois pressiona o botão “enviar”.
Embora esse processo leve apenas alguns instantes, é essencialmente o que os repórteres fazem.
Duas coisas, no entanto, separam esse processo jornalístico de um produto final que é o “jornalismo”. O primeiro é o motivo e a intenção. O objetivo do jornalismo é dar às pessoas as informações necessárias para tomar melhores decisões sobre suas vidas em sociedade. A segunda diferença é que o jornalismo envolve a aplicação consciente e sistemática de uma disciplina de verificação para produzir uma verdade funcional, em oposição a algo que é meramente interessante ou informativo. No entanto, embora o processo seja crítico, é pelo produto final – a “história” – que o jornalismo é julgado.
Hoje, quando o mundo está repleto de informações e notícias estão disponíveis a qualquer momento em qualquer lugar, um novo relacionamento está sendo formado entre os produtores de jornalismo e as pessoas que o consomem.
O novo jornalista não é mais um selecionador das informações a serem transformadas em notícias (o gatekeeper ou porteiro, na teoria de jornalismo que recebe este nome), que decide o que o público deve ou não saber. O jornalista que trabalha isoladamente agora é seu próprio gerente e editor de circulação. Para produzir algo relevante, os jornalistas devem agora verificar as informações que os consumidores já tem ou provavelmente terá à sua disposição com mais facilidade e, em seguida, ajudá-los a entender o que isso significa e como as informações se encaixam no enorme do fluxo de notícias.
Assim, escrevem Kovach e Rosenstiel: “A primeira tarefa do novo jornalista/ criador de sentido é verificar quais informações são confiáveis e, em seguida, ordená-las e tratá-las de tal forma que as pessoas possam utilizá-las com eficiência”. Uma parte dessa nova responsabilidade jornalística é “fornecer aos cidadãos as ferramentas necessárias para extrair conhecimento para si mesmos da enchente de informação, boataria indiferenciada, propaganda, fofoca, fato, afirmação e alegação que o sistema de comunicações produz na atualidade”.
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* Este guia, como muitos outros da seção de Jornalismo do API, baseia-se amplamente nas pesquisas e ensinamentos do Committee of Concerned Journalists (CCJ), que durante dez anos organizou o debate entre milhares de jornalistas sobre o que eles faziam, como eles faziam e por que isso era importante. O autor do guia, Walter Dean, era diretor de treinamento do CCJ, e resumiu os nove elementos do livro, mai9s o décimo elemento, acrescentado mais tarde por um dos autores do livro, Tom Rosenstiel, udiretor-executivo da API e ex-copresidente do comitê.