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Lígia Ferreira recupera obra jornalística de Luiz Gama

A obra reúne 61 artigos de Luiz Gama publicados nos principais veículos de São Paulo e do Rio de Janeiro. Gama foi o único intelectual brasileiro submetido à escravidão e passou para a história por sua atuação como advogado dos escravizados. Veja resenha de Flávio Carrança para o site da APJor

Por Flávio Carrança*

Pouco conhecida dos brasileiros e ausente dos currículos das escolas de comunicação, a obra jornalística do também poeta e advogado abolicionista Luiz Gama está agora mais acessível ao público graças a uma  nova coletânea da organizada pela professora Lígia Fonseca Ferreira, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Lições de resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro, lançada em e-book e em papel pela Sesc Edições.

A obra reúne artigos publicados na imprensa abolicionista paulista e carioca durante as décadas de 1860 a 1880, período em que Gama denunciou a condição de mulheres e homens escravizados, apesar de beneficiados pela Lei do Ventre Livre, assinada em 1831.

Com introdução e notas da organizadora, prefácio do historiador Luiz Felipe de Alencastro e orelha do advogado e professor Silvio Almeida, a obra traz uma introdução de quase 70 páginas, necessárias, segundo a autora, para apresentar ao público 61 artigos, dos quais 42 inéditos, publicados e assinados  por Luiz Gama, de 1864 a 1882.

Em suas 389 páginas, o volume inclui ainda uma vasta cronologia do autor, além de um apêndice com cinco cartas de Luiz Gama e quase 400 notas de pesquisa, que ajudam o leitor a saber quem são as pessoas citadas nos artigos, entender melhor do que ele está falando ou a que lei se refere.

Responsável pelo resgate da obra escrita de Gama, a professora Lígia organizou, como trabalho pioneiro, a reedição crítica das Primeiras Trovas Burlescas de Luiz Gama e Outros Poemas (Martins Fontes, 2000), coletânea que inclui o texto cotejado de Primeiras Trovas Burlescas de Getulino, única obra publicada em vida (1859) pelo baiano radicado em São Paulo Luiz Gonzaga Pinto da Gama. Seu segundo livro sobre o tema é Com a Palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas (IMESP, 2011), como indica o nome.

Neste seu terceiro livro, ela procura dar destaque ao trabalho jornalístico de Gama que foi, durante praticamente toda sua vida, um homem de imprensa, articulista e comentarista jurídico, inclusive no âmbito internacional. Conhecido como poeta, principalmente pela ampla difusão dos versos do poema “Quem sou eu” (mais conhecido como “Bodarrada”), o único intelectual brasileiro submetido à escravidão passou à história por sua atuação como advogado dos escravizados, mas tinha também como profissão o jornalismo, atividade à qual se dedicou durante praticamente toda a vida.

Os textos selecionados demonstram que sua atuação na imprensa ocorreu nos principais veículos de São Paulo e do Rio de Janeiro, com artigos na maior parte focados nos temas da escravidão, liberdade/emancipação e  ideias republicanas, pelas quais atuou intensamente. São temas que, pode-se dizer, retomam atualidade nestes tempos de desprezo pela democracia e pelos valores republicanos. Foi também pioneiro ao editar, em parceria com o desenhista Ângelo Agostini, os periódicos críticos e humorísticos Diabo Coxo e o Cabrião, tornando-se posteriormente proprietário de outro semanário humorístico ilustrado O Polichinello.

Lígia Ferreira considera Luiz Gama um exemplo de enunciação negra dentro da imprensa geral. Assim como fez de maneira precursora na literatura, também nos artigos ele revela um eu negro, marcando seu pertencimento racial. Numa entrevista que me concedeu, Lígia observou que, ao se referir aos escravizados, Gama está falando de sua própria realidade.

Os artigos revelam um homem negro que convivia com a elite intelectual da então pequena São Paulo, na época circunscrita aos alunos e professores da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, integrantes do poder judiciário, jornalistas, alguns poucos empresários e pessoas com outras profissões, muitos deles pertencentes à Loja (maçônica) América, a maior da cidade, que Gama presidiu por vários anos.

Dessa Loja saíram diversos nomes importantes dos movimentos republicano e abolicionista, como Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, Joaquim Roberto de Azevedo Marques, proprietário de fundador do Correio Paulistano, onde Luiz Gama escrevia com frequência e grande liberdade, e também Ferreira de Meneses, jornalista negro do Rio de Janeiro, depois fundador da Gazeta de Notícias, importante jornal abolicionista carioca, com o qual ele também colaborou.

Era uma loja dedicada à filantropia, partindo dela iniciativas como a criação de um curso para alfabetização de adultos e de uma biblioteca popular. Essa rede de sociabilidade, segundo Lígia, foi o apoio com que contou Luiz Gama para conseguir a alforria de centenas de homens e mulheres escravizados.

Como exemplo da atualidade dos textos jornalísticos de Luiz Gama, e como uma espécie aperitivo, ofereço ao leitor pequeno trecho retirado de artigo publicado por ele no Correio Paulistano em novembro de 1871 e incluído por Lígia Ferreira nessa obra fundamental: “Se algum dia, porém, os respeitáveis juízes do Brasil esquecidos do respeito que devem à lei, e dos imprescindíveis deveres, que contraíram perante a moral e a nação, corrompidos pela venalidade ou pela ação deletéria do poder, abandonando a causa sacrossanta do direito e, por uma inexplicável aberração, faltarem com a devida justiça aos infelizes que sofrem escravidão indébita, eu, por minha própria conta, sem impetrar o auxílio de pessoa alguma, e sob minha única responsabilidade, aconselharei e promoverei não a insurreição, que é um crime, mas a “resistência”, que é uma virtude cívica, como a sanção necessária para pôr preceito aos salteadores fidalgos, aos contrabandistas impuros, aos juízes prevaricadores e aos falsos impudicos detentores.”

*Flávio Carrança é jornalista e associado da APJor

Serviço:
Lições de resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro
LIGIA FONSECA FERREIRA (Org.)
Edições Sesc São Paulo, 2020, 392 p., R$ 68,00
E-book (Amazon), R$ 21,25

APJor

APJor

A Associação Profissão Jornalista (APJor) é uma organização sem fins lucrativos, criada em 2016 por um grupo de 40 jornalistas, com o objetivo de defender o jornalismo ético e plural e valorizar o papel do jornalista profissional na sociedade brasileira.