Por Redação APJor
Há mudanças muito rápidas e profundas no jornalismo. Grande parte da verba de publicidade é arrebanhada por Google e Facebook. Ao mesmo tempo, surge uma gama enorme de meios e possibilidades de comunicação com outras fontes de sustentação. Mas muitas dessas iniciativas vivem à míngua, sem conseguir saber o dia de amanhã. Por que a APJor quer discutir uma nova institucionalidade para a profissão nesse contexto?
“Por isso mesmo”, responde Fred Ghedini: “Ou apuramos o nosso olhar para o conjunto das organizações de jornalistas que construímos, para nossa relação com as empresas e outras instituições, com os movimentos sociais e com novos formatos do jornalismo — ou vamos ficar olhando para algo que não mais existe.”
O Encontro APJor 2020, em setembro, tratará da governança sobre a informação jornalística, da formação do jornalista, da regulamentação da profissão e da sustentabilidade da atividade jornalística. Também vai retomar um velho debate da categoria sobre um possível conselho de jornalistas (ou de jornalismo), que alguns também preferem que seja um colégio de jornalistas, como os Colegios de Periodistas na Espanha e na América Latina, ou uma ordem de jornalistas, como a Ordine dei Giornalisti na Itália (ou como a OAB, a Ordem dos Advogados do Brasil). “Mas pretendemos retomar esses debates sob uma nova ótica”, explica Ghedini, nesta entrevista a Everaldo Gouveia, Cibele Bouro e Leda Beck.
Everaldo Gouveia – O tema da governança sobre a informação jornalística é novo na pauta do Encontro APJor 2020, não é?
Frederico Ghedini – Sim. Governança significa compreender o perfil da profissão e do profissional de hoje, que é bem diferente do que se entendeu por “jornalismo” e “jornalista” até meados dos anos 1990, e avançar para uma nova institucionalidade, o que inclui formação e regulamentação. Do passado, o que podemos recuperar sem perigo de perder o norte são os preceitos éticos e o conjunto de boas práticas da profissão. Também podemos retomar um debate que data dos anos 1940, o de um possível conselho de jornalistas ou de jornalismo.
Mas não só e nem da forma como já fizemos. Ou apuramos o nosso olhar para o conjunto das organizações de jornalistas que construímos ao longo dos anos (e que devem ser fortalecidas), para a nossa relação com as empresas e outras instituições, movimentos, coletividades e até com os próprios jornalistas, individualmente, ou vamos ficar eternamente correndo atrás do nosso próprio rabo.
Há novidades importantes a considerar, como as mais de uma centena de iniciativas de jornalistas. Parte delas consegue se manter. Mas uma boa quantidade vive à míngua, sem condições de saber como vai sobreviver no dia seguinte. Muitos jornalistas são obrigados a cuidar das suas iniciativas como se fossem empresários. Alguns deles não querem ser empresários. Talvez estejam mais próximos de ser empreendedores sociais ou coisa do tipo. Qual a modelagem das novas organizações jornalísticas, nesses casos?
Outros estão simplesmente desempregados, sem conseguir se encaixar num mundo que exige diferentes conhecimentos, e há uma quantidade enorme de jovens profissionais se virando como podem, batalhando por uma oportunidade num mercado de trabalho formal cada vez mais reduzido. Enquanto isso, se submetem a trabalhos com um nível descomunal de exploração. Ao mesmo tempo, nas redações, o número de profissionais é cada vez menor, assim como os salários e a idade de quem consegue chegar lá.
Leda Beck – Diante de tudo isso, faz sentido voltar ao tema do conselho?
FG – Tudo isso evoca inelutavelmente o tema do conselho. No meu entender e de muitos colegas que se associaram à APJor, o conselho teria papel essencial no fortalecimento dos jornalistas e da profissão. É uma visão da governança do jornalismo em novos tempos, quando o jornalista trabalha muito mais próximo do público e não é mais o “dono da pauta”, mas um companheiro mais informado e mais experiente do que os que entram na produção das notícias, território antes reservado ao solo sagrado das redações.
Esses novos parceiros dos jornalistas profissionais chegam para atuar, sem ter qualquer preparação. Em paralelo, constroem-se esquemas suspeitos, sustentados com dinheiro de gente em geral extremamente conservadora, verdadeiras fábricas de mentiras, com “filiais” espalhadas por vários países. Que confusão!
O que é relevante em tudo isso? Como a informação que chegou agora se encadeia com aquela que já estava aqui? De onde veio tal informação? A fonte é segura? Se o jornalista não souber responder a essas perguntas para o seu público, não sobreviverá na profissão.
EG – Mas o que isso tudo tem a ver com a questão da governança e, mais precisamente, de um conselho profissional?
FG – Pois é. Talvez não seja um conselho profissional, nos termos das 28 autarquias que existem aqui no Brasil. Pode ser um conselho de jornalismo, associação civil ou ente criado por lei, com a participação de não-jornalistas, de pessoas que são fonte, de outros que são parte do público, mas que se interessam e valorizam o espaço jornalístico.
“Deveríamos pensar em uma governança sobre
a informação jornalística que tenha no seu núcleo os
jornalistas eleitos democraticamente”
Deveríamos pensar em uma governança sobre a informação jornalística que tenha no seu núcleo os jornalistas eleitos democraticamente pelos associados em conexão com várias câmaras, com representantes das organizações dos jornalistas profissionais, das empresas jornalísticas, da área jurídica e do Direito etc. etc. Tudo organizado em uma rede especialmente desenhada para ter segurança e, ao mesmo tempo, para agilizar e ajudar a organizar debates e tomadas de decisões, permitindo a participação de pessoas de qualquer parte do país.
É uma ideia. Mas o que e como será, de fato, depende da participação de muita gente, de um debate muito amplo, incluindo até nossos parceiros de tecnologia, cada vez mais presentes na produção das notícias.
LB – Mas o formato que você acaba de desenhar foge bastante do que se debateu até agora.
FG – Sim. É o que eu quero dizer quando falamos de pensar a governança do jornalismo em uma realidade que mudou em relação ao que vivíamos há poucos anos. Hoje, temos instrumentos, meios e estamos desenvolvendo uma cultura de comunicação que não tínhamos quando foram criadas as atuais organizações, os conselhos existentes, aqui e em outros países… enfim, temos que pensar com a cabeça e as condições de quem vive no presente e tenta identificar as tendências que nos conduzirão a um futuro ainda mais diverso. Vivemos uma passagem entre duas eras distintas, com mudanças profundas que precisam ser estudadas e assimiladas.
EG – E como isso se conecta com o debate sobre um organismo do tipo Conselho Federal de Jornalismo(CFJ) , como foi proposto em 2003 pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e seus 31 sindicatos?
FG – Não é a mesma coisa. Mas é também uma retomada do tema. Sob nova ótica. É um tema que volta sempre à pauta porque o jornalismo tem uma importante baliza ética, não é uma atividade privada. É uma atividade pública por definição. Nenhum outro ramo da comunicação tem uma obrigação ética de desvelar os diferentes interesses envolvidos em uma questão. É uma obrigação específica do jornalismo, que também tem um compromisso com a verdade factual. Conceitos como esses não devem, não podem mudar.
Uma das coisas que está valorizando e tornando o jornalismo vital aos olhos de um número cada vez maior de pessoas é o surgimento da indústria da mentira. O jornalismo tem, aí, um papel essencial, como mostra a luta contra a desinformação no caso da Covid-19, com muitas notícias falsas, mentiras sendo divulgadas e reproduzidas até pelo presidente da República e seus apoiadores.
A sociedade precisa do jornalismo, como uma grande praça pública onde as coisas sejam ditas de forma que se possa acreditar nelas. Porque houve apuração, houve checagem de fatos e falas, porque há certas práticas que foram observadas. O conselho de jornalistas ou de jornalismo é uma iniciativa para fortalecer esse espaço público e essas práticas.
LB – Você participou da discussão e elaboração da proposta do CFJ em 2003/2004. Você mudou sua posição em relação àquela proposta?
FG – Sim. Hoje eu entendo que a proposta de um conselho do tipo associação civil, não autárquico, seria mais adequado para a nossa área. Não que eu discorde da existência dos atuais conselhos profissionais, nas outras profissões. Apenas penso que, no caso dos jornalistas, e ainda por cima nesta nova realidade em que vivemos, seria melhor um conselho de outro tipo. Contudo, independente do que penso, o importante é que o debate seja feito.
Em 2004, nos seis meses em que o PL 3.985/04, o projeto do CFJ, tramitou na Câmara, 90% do que foi publicado na imprensa era contra a proposta do conselho. Não houve um debate real. A Fenaj e os sindicatos não foram ouvidos. É preciso que haja um debate real. Se acontecer de a maioria dos jornalistas se posicionarem a favor de um conselho, o melhor modelo será aquele que construiremos juntos, num processo amplo, aberto. Sem vetos e sem censura.
“Na França, há uma cláusula de consciência do jornalista,
uma lei que permite ao jornalista recusar a cobrir um assunto que esteja
em desacordo com a sua consciência profissional ou sua crença”
Cibele Buoro – Quem já leu livros de memórias de Mino Carta, Villas Bôas Corrêa, Castelinho, nota que eles tinham plena autonomia para trabalhar. Mas essa autonomia foi se perdendo, como mostra a submissão forçada de repórteres aos insultos e maus tratos do presidente da República. Muitas vezes, também, o repórter tem uma boa pauta com uma boa fonte, mas há interesses comerciais, publicitários e políticos dos donos dos jornais que impedem o jornalista de levar a pauta adiante. Falta, pois, ao jornalista uma autonomia profissional para fazer bom jornalismo. A nova institucionalidade que estamos buscando contemplaria também essa questão da autonomia?
FG – O jornalismo é algo que envolve uma grande complexidade e a questão da autonomia depende também da cultura jornalística em que estamos imersos. Nos Estados Unidos, na Inglaterra, na França, em alguns outros países, a autonomia do jornalista é mais consolidada. Na França, por exemplo, há uma cláusula de consciência do jornalista, uma lei. O jornalista pode se recusar até a cobrir um assunto que esteja em desacordo com a sua consciência profissional ou sua crença, sua moral. Aqui no Brasil, essa liberdade é maior para os grandes nomes da profissão (vejam, por exemplo, o Datena anunciando que não quer mais entrevistar o presidente da República). Mas, quando você vai descendo na escala de poder dentro da redação, as restrições vão aumentando. Talvez no novo contexto da comunicação os interditos antijornalísticos dos donos fiquem mais difíceis de ocorrer.
CB –Entendo que só podemos conseguir autonomia quando tivermos uma categoria com jornalistas fortalecidos como profissionais.
FG – Essa questão da autonomia é central no jornalismo. Há um livro que acho que todos os jornalistas deveriam conhecer, Os Elementos do Jornalismo, lançado em 2001 nos Estados Unidos e em 2003 no Brasil, que coloca a questão da autonomia do jornalista como um dos elementos essenciais na profissão. O jornalista tem que ter liberdade para trabalhar, de acordo com as boas práticas da profissão e com um conjunto de princípios éticos, práticas e princípios que um conselho também deve manter sempre atualizados. Mas tudo isso são batalhas a travar. Não é que você faz o conselho e tem automaticamente garantida a autonomia no trabalho do jornalista. É bem o contrário.
LB – E os que veem um conselho como instrumento de censura?
FG – É estranho, porque a censura é algo que é imposta aos jornalistas desde sempre, seja pelo Estado, seja pelos patrões. Não seriam os próprios jornalistas tão ignorantes a ponto de construir um instrumento de censura para si mesmos. Trata-se de um preconceito constantemente levantado por empresas jornalísticas e alguns colegas que, possivelmente, não veem a importância de dar maior transparência ao trabalho jornalístico.
Hoje, penso que a transparência é um tema que não esteve nos debates anteriores. Nesse ponto, vejo que também estava errado. Pois essa é uma tendência irreprimível diante do grau de comunicação que há na sociedade atualmente. O instrumento que viermos a construir precisa ser percebido como um instrumento de defesa dos jornalistas, muito mais do que de punição a um ou outro que age de má fé como profissional. Ao contrário de significar censura, o conselho seria um aliado muito forte na luta pela liberdade de imprensa, pela liberdade de trabalho profissional com autonomia e com ética, sendo respeitado e reconhecido pela sociedade.
“Se compreenderem que o papel de uma organização
de nível superior é fortalecer sua autonomia,certamente
os jornalistas apoiarão a criação desse organismo”
Mas um conselho assim só existirá no Brasil se as redações, de todos os tipos, de todo o país, os jornalistas em geral e suas organizações quiserem essa autonomia. Se lutarem por ela. Por isso, a questão da censura não se coloca. Repito: os jornalistas não lutarão para serem censurados! Se compreenderem o papel de uma organização de nível superior como algo que venha para fortalecer essa autonomia, certamente os jornalistas apoiarão a criação desse organismo.
LB – A Fenaj e os seus sindicatos têm código de ética. Qual seria a autoridade adicional de um conselho, ordem ou colégio, seja o que for, para poder afirmar esse código e ser respeitado?
FG – O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros é um código muito bom. Foi debatido e votado em congressos de jornalistas organizados pela Fenaj. Mas a Fenaj e os sindicatos têm dificuldade para tornar o código de ética e suas comissões de ética conhecidos pela população. O espírito das comissões de ética é que um código de ética jornalístico seja conhecido publicamente, para que a população possa eventualmente lançar mão dele. As comissões dos sindicatos são a primeira instância e a Comissão de Ética nacional, ligada diretamente à Fenaj, é a segunda instância. O que precisamos conversar com os sindicatos e com a Fenaj é como ficariam essas comissões de ética se houver um conselho. Elas passariam para o conselho ou não? É algo de que precisaremos tratar mais à frente.
LB – Ou o conselho seria uma espécie de terceira instância?
FG – Não sei. É uma questão a ser pensada. O fato importante, significativo, é que essas comissões hoje não têm estrutura para operar adequadamente. Sua existência não é divulgada amplamente, de forma que elas sejam conhecidas do grande público. O que visualizamos no futuro é que, em conversa com os sindicatos e com a Fenaj, nós resolvamos isso de forma que essas comissões, ou outras comissões, ou uma terceira instância, como você diz, possam ser suficientemente conhecidas da população, a ponto de o cidadão acionar a comissão de ética quando achar necessário.
LB – Quantos jornalistas há no Brasil? Desses, quantos são os sindicalizados?
FG –De acordo com uma pesquisa de 2012 da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), realizada em convênio com a Fenaj, naquela ocasião havia 145 mil jornalistas no Brasil. Em 2020 é possível que o número tenha chegado a 150 mil. Ou que tenha diminuído, devido às dificuldades no jornalismo e na economia. O número de jornalistas sindicalizados é bem menor. A UFSC está se preparando para refazer a pesquisa sobre o perfil do jornalista. Aí teremos números mais precisos e atualizados para agora.
EG – Há algum elemento novo que possa finalmente alavancar um avanço em direção a um conselho ou ordem de jornalistas?
FG – Há sim. Um deles foi a MP 905/19 do atual presidente. Pela primeira vez, nossa regulamentação foi objeto de uma medida provisória que acabava com o registro profissional dos jornalistas e de outras dez profissões. A MP foi retirada da pauta pelo presidente do Senado, em 17 de março. Mas o fato de nossa regulamentação ter sido objeto da MP realça a importância de tratarmos do tema. Entre outras funções, o conselho profissional ou conselho de jornalismo teria como um dos seus focos de atuação cuidar da regulamentação da profissão.
Outro elemento importante da conjuntura é a questão das fake news ou da indústria da mentira, como prefiro nomear, pois não é nada diferente disso. Nem todo mundo tem condição de checar as informações que recebe ou nem todo mundo conhece os procedimentos de checagem ou sequer que existem agências jornalísticas voltadas especificamente para isso. Há profissionais produzindo fake news? O jornalista é um profissional que apura os fatos e checa sua procedência com fontes confiáveis. Isso é incompatível com ser um profissional da mentira. Um conselho com ampla participação dos jornalistas teria a estatura moral para trazer tal debate a público.
Há, também, esse tsunami que se abate sobre a profissão, a mudança cultural trazida pelas tecnologias do mundo digital e as dificuldades com o financiamento do jornalismo independente. Um conselho pode também ser o ambiente adequado para organizar melhor a participação dos próprios jornalistas – e de parte da sociedade – no jornalismo que surge dessas mudanças.
EG – O Encontro APJor 2020, que estamos preparando será um evento exclusivamente da APJor ou serão convidadas outras organizações, como a Fenaj e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), por exemplo?
FG – A pergunta é muito importante porque algumas pessoas tendem a confundir a nossa pequena associação com um embrião de conselho profissional. É uma visão equivocada. A APJor é apenas um motor para levar essa e outras discussões adiante, entre os jornalistas e fora do meio jornalístico. Somos uma associação de inteligência e de formulação, e não de representação. A maioria dos que militam na defesa da profissão, coletivamente, estão em outras organizações de jornalistas, como a Rede Brasileira de Jornalismo Ambiental (RBJA), a rede ComCiência, dos jornalistas de ciência; a Jeduca, dos jornalistas de educação; a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji); a Fenaj, a ABI e tantas outras. A APJor convida essas organizações a participar do debate, assim como a franja enorme de jornalistas que não está em nenhuma delas.