Por Flavio Carrança*
Demorou muito, mas vem crescendo entre jornalistas – e também em algumas empresas que empregam esses profissionais – a percepção de que a ausência ou a presença reduzida de profissionais negros tem influência negativa sobre a qualidade da cobertura de diversos assuntos. O exemplo mais conhecido e citado é o primeiro debate sobre a morte de George Floyd na Globonews, em que havia apenas jornalistas brancos, o que gerou uma repercussão tão negativa na rede que rapidamente um novo debate foi realizado apenas com jornalistas negros. Por outro lado, é possível notar no meio empresarial como um todo e, especificamente, nas empresas que empregam jornalistas, o crescimento da percepção de que é necessário abrir espaço real, nos variados níveis de hierarquia, para profissionais afrodescendentes.
Começaram a aparecer há algum tempo os dados que embasam essa necessidade de que as empresas de comunicação abram espaço para uma presença proporcional aos 54,6% da população brasileira que se declaram pretos e pardos. De acordo com levantamento do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), no estado de São Paulo, em 2018, eram pretos e pardos apenas 13,5% dos jornalistas com carteira assinada, que recebiam rendimentos, em média, 30,4% menores que os salários pagos aos brancos. A última pesquisa “Quem é o Jornalista Brasileiro”, realizada em 2012 pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em convênio com a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), informa que apenas 23% dos jornalistas brasileiros eram pretos e pardos naquele período. É possível imaginar que essa situação não tenha se alterado significativamente de lá para cá.
Tem mais: em artigo publicado na revista Piauí, edição de julho deste ano a jornalista negra e ombudsman da Folha de S. Paulo, Flávia Lima, informa sobre um levantamento feito em 2019 pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Esse estudo, que levantou a composição racial dos colunistas dos três jornais de maior circulação no Brasil – Folha de S. Paulo, O Globo e O Estado de S. Paulo –, revelou que os homens brancos eram 68% e as mulheres brancas chegavam a 28%. Os homens negros não passavam de 2%. As mulheres negras também ficavam em 2%.
Voltemos então ao episódio já citado do debate da Globonews. Parece claro que um debate sobre racismo não tem a mesma qualidade sem a presença das pessoas que tem vivenciado o racismo na própria pele. Mas não é só isso, pois dessa forma corre-se o risco de transformar jornalistas negros apenas em especialistas em racismo, quando a questão é estimular que estejam representados em todas as editorias, assim como nos diversos níveis de hierarquia.
Vale destacar a existência de uma outra face desse processo de enegrecimento do jornalismo, que é o surgimento e expansão do que se poderia chamar de uma nova mídia negra, com inserção qualificada nas redes sociais, da qual cito como exemplos Alma Preta, Jornal Empoderado, Notícia Preta, Mundo Negro e o Portal Geledés. Trata-se, na minha opinião, de uma versão contemporânea da tradicional imprensa negra, jornalismo feito por negros e negras para negros e negras. Essa imprensa negra cumpre o papel de fazer a cobertura dos temas que os grandes veículos, que também poderiam ser chamados de imprensa branca, não conseguem nem desejam enxergar por conta de viverem imersos no universo hegemônico da branquitude.
*Flávio Carrança é jornalista e associado da APJor
Foto: Vlada Karpovich, no Pexels
Artigo da Piauí: É só o começo: o racismo e a imprensa brasileira