Por Laurindo Lalo Leal Filho*
Em 2018, um plebiscito na Suíça rejeitou a proposta de abolir as taxas pagas pela população para manter as emissoras públicas de rádio e TV. Um pouco mais de 70% dos eleitores votaram pela manutenção da taxa anual, recurso que procura garantir a independência desses serviços, tanto da propaganda comercial, como de verbas públicas, gerenciadas pelo governo.
Muito antes dos suíços, ainda nos anos 1980, o Reino Unido passou por processo semelhante. A fúria neoliberal imposta ao país pelo governo de Margareth Thatcher ameaçou a sobrevivência da BBC, enquanto emissora pública, mantida pelo público e livre de interesses comerciais ou governamentais.
A primeira-ministra defendia o fim da taxa paga pelos ouvintes e telespectadores e sua substituição pela propaganda. Uma comissão formada no Parlamento analisou a proposta e concluiu por sua rejeição, levando em conta, em grande parte, as manifestações do público na defesa do modelo original de financiamento. Na base desse apoio, estava o enraizamento da BBC no cotidiano do povo britânico, consciente de que a qualidade do serviço prestado era resultado de sua independência política e editorial. A intransigente Thatcher, que havia conseguido dobrar até o poderoso sindicato dos mineiros, foi obrigada a curvar-se diante do apoio público conquistado pela BBC.
São apenas dois exemplos do reconhecimento da importância dos serviços públicos de rádio e televisão para a diversidade da circulação de fatos e idéias na sociedade. Essenciais para a vida democrática. Falta isso ao Brasil. Aqui, rádio e TV são praticamente monopolizados por interesses comerciais, políticos e, mais recentemente, religiosos, estes últimos contaminados pelos outros dois.
Embora tendo surgido no Brasil como empreendimento não comercial, o rádio – que completa ano que vem um século de existência em nosso país – sucumbiu rapidamente aos interesses empresariais. Edgard Roquette-Pinto, Henrique Morize e outros membros da Academia Brasileira de Ciências, que fundaram em 1923 a pioneira Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, criaram uma sociedade de ouvintes, participantes ativos da vida da emissora. Bem nos moldes das emissoras públicas que começavam a surgir em outros países.
Mas aqui o sonho durou pouco. Em menos de uma década, a rádio em forma de sociedade sucumbiu diante da concorrência das rádios comerciais instalando-se pelo país, impulsionadas por verbas de propaganda cada vez mais vultosas. A ponto de os fundadores da emissora pioneira desistirem do empreendimento, entregando-o ao governo, com a condição de ela continuar funcionando sem propaganda. É assim que até hoje funciona a rádio MEC, sucessora da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, correndo o risco de não chegar aos 100 anos se forem confirmadas as ameaças de fechamento, anunciadas pelo atual governo.
Já a televisão tem um inicio bem menos virtuoso em nosso país. Ao contrário, ela surge marcada pelo jeitinho brasileiro, sinônimo de esperteza quase sempre fraudulenta. Ao ser implantada no Brasil, em 1950, a TV não seguiu os ritos normais de concorrência, esperados para a outorga de um bem público, como são as ondas eletromagnéticas por onde trafegam os sinais do rádio e da televisão. Um bem finito e escasso, outorgado pelo Estado em nome da sociedade.
Sob a falsa alegação que a TV era apenas uma extensão tecnológica do rádio, empresários que já controlavam o veículo pioneiro se apossaram dos canais destinados à televisão, monopolizando comercialmente esse espaço público. Criou-se assim a idéia de que os serviços de rádio e TV deveriam ser empreendimentos privados, desprezando-se a possibilidade de sua utilização sob a forma de comunicação essencialmente pública. Ao contrário de outros países, cujos governos impulsionaram a comunicação pública, tornando-a uma referência institucional, mantida sem concorrência durante muito tempo.
Essa distinção entre as duas formas de implantação da radiodifusão é importante por dois motivos. Primeiro por oferecer à sociedade a idéia de que se trata de um serviço público, capaz de funcionar apenas com o apoio do próprio público, sem outro tipo de interferência. Foi sendo formada, assim, uma cultura de comunicação pública, com força para prestigiá-la e, quando fosse necessário, defendê-la.
O segundo motivo decorre do primeiro. A sustentação do apoio à comunicação pública tem como base a qualidade dos serviços oferecidos. É preciso lembrar que os precursores desse trabalho têm suas origens, ou pelo menos são fortemente influenciados, pelas conquistas da época na ciência, na educação, nas artes e na cultura em geral, trazendo-as para os novos veículos de comunicação. Com isso, estabelecem padrões de qualidade reconhecidos e interiorizados pelo público.
No caso brasileiro, a televisão em seu início, embora mantida pela propaganda, guardava alguma relação com os ideais dos precursores do rádio. Na dramaturgia, nos musicais, nos programas infantis, em praticamente toda a programação. Com a popularização do acesso aos receptores de TV, essa preocupação com a qualidade foi sendo substituída pela luta por audiência, imposta pelo mercado. Com regulação frouxa e, mesmo assim, pouco aplicada, a televisão comercial brasileira afundou ao longo do tempo no pântano da mediocridade, com as exceções de praxe.
Um dos antídotos a essa situação deveria ter sido a formação de uma rede nacional de televisão pública, capaz de concorrer com as redes comerciais, através de programações ousadas, instigadoras do conhecimento, do espírito crítico, do acesso a aquilo de que mais sofisticado o espírito humano pode conceber. Apresentadas com o melhor da técnica televisiva, atraente em ritmo, sons e imagens.
Algumas tentativas frustraram-se nesse caminho. Uma das mais lembradas foi a do presidente Getúlio Vargas que, em seu segundo mandato, nos anos 1950, aventou a possibilidade de outorgar um canal de TV à Rádio Nacional do Rio de Janeiro, controlada pelo governo federal e líder de audiência. A morte do presidente adiou esse plano, retomado posteriormente por Juscelino Kubitschek. A reação dos meios comerciais foi feroz. Assis Chateaubriand, poderoso dono dos Diários e Emissoras Associados, conglomerado de mídia semelhante na atualidade ao grupo Globo, ameaçou derrubar o presidente caso a outorga se concretizasse. Diante dessas pressões, o canal 4, do Rio de Janeiro, que seria destinado por JK à televisão pública acabou indo parar nas mãos da Globo, onde se encontra até hoje.
Emissoras não-comerciais começaram a surgir nos anos 1960, sob o titulo de “educativas”, controladas, quase todas, por governos estaduais. Não possuíam, dessa forma, o requisito básico da comunicação pública, representado pela independência política. Nem mesmo a Fundação Padre Anchieta, mantenedora da Rádio e da TV Cultura de São Paulo, ainda que constituída sob a forma de uma fundação de direito privado, possuía na prática aquela independência.
Sem um financiamento regular, garantido em Lei, a fundação vive até hoje sob os humores do governo de turno. Quase todos condicionando recursos à submissão aos seus interesses políticos. Diante dessa realidade, presente em praticamente toda a história da Fundação Padre Anchieta, pouco adiantou o arcabouço institucional democrático que rege o seu funcionamento.
Por ele, o Conselho Curador da instituição é o órgão máximo de direção, responsável por formular suas diretrizes gerais, livre de qualquer ingerência externa. São 47 integrantes, parte eleita pelo próprio Conselho, ao lado de dirigentes de Universidades, de instituições de pesquisa, secretários do governo estadual, entre outros. Uma aparente diversidade que se esvai quando se atenta para as relações políticas da maioria dos seus participantes, componentes de uma hegemonia política consolidada no Estado ao longo de mais de duas décadas.
Por seu lado, a comunicação pública, em nível nacional, praticamente não avançou, após as tentativas frustradas de Getúlio e Juscelino. Apenas em 2007, no segundo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, é que surgiu no Brasil a primeira rede pública de rádio e televisão, formada pela EBC, a Empresa Brasil de Comunicação, e constituída pelas emissoras federais já existentes.
Seu modelo institucional adotou igualmente o caráter público, com duas características básicas: um Conselho Diretor como órgão máximo da instituição, com hegemonia de representações de entidades da sociedade civil, e a presidência da diretoria executiva nomeada pela presidência da República mas com mandato não coincidente com o do chefe do governo e com estabilidade no cargo, cuja remoção só poderia ser feita antecipadamente, em circunstâncias especiais, pelo próprio Conselho.
Não por acaso, esses dois pontos chaves da constituição institucional da EBC, foram eliminados por uma das primeiras medidas provisórias enviadas ao Congresso pelo governo que assumiu o poder após o golpe de 2016.
Durante nove anos foi possível testar no Brasil uma forma de comunicação pública, ainda inédita por aqui, em termos nacionais. Acertos e erros marcaram esse processo, mas só a ampliação do debate em torno do tema já foi um grande avanço. Pela primeira vez tornou-se possível avaliar na prática a possibilidade de um projeto de comunicação pública oferecida a todo o país, além de mostrá-la como alternativa real ao modelo comercial até então hegemônico.
Os acertos, além do modelo institucional proposto, puderam ser vistos em determinados momentos nas programações oferecidas. A diversidade artística e cultural brasileira, a presença de personagens importantes para o debate político nacional, excluídos das emissoras comerciais, e a própria crítica da comunicação, eram algumas das novidades oferecidas por essas programações, e até então inéditas na televisão brasileira.
No jornalismo o processo foi mais árduo. A influência histórica do modelo comercial, com linhas editoriais marcadas pelos interesses dos setores dominantes na sociedade, também contaminaram grande parte do jornalismo oferecido. Nos breves momentos em que essa barreira foi rompida, com a abertura de espaços para uma maior amplitude no leque de informações oferecidas ao público, a resposta foi amplamente positiva, não apenas através dos índices de audiência, como das manifestações recebidas.
Faltou, no entanto, o mais importante: a possibilidade de um acesso amplo e fácil a essa programação por toda a sociedade. Os sons e imagens oferecidos pelos veículos da EBC não eram universalizados. No caso da TV Brasil, por exemplo, a rede nacional baseava-se em convênios com emissoras regionais controladas por governos estaduais, ficando portanto refém de interesses políticos fragmentados pelo país. Alem do baixo investimento na transmissão de sinais das próprias emissoras geradoras, criando uma grande área de sombra, até em cidades como Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo.
Limitações que impediram o enraizamento das emissoras da EBC na sociedade, necessário para sustentá-las e defendê-las. O golpe que acabou com essa primeira experiência de uma comunicação pública eletrônica de caráter nacional passou praticamente desapercebido pela sociedade. Com a honrosa exceção de parte dos funcionários da EBC e de militantes dos movimentos de defesa da comunicação pública, praticamente mais nenhuma voz se levantou para se contrapor a esse ataque que afrontou a própria Constituição Federal. Está lá, em seu artigo 223, que as concessões dos serviços de radiodifusão devem observar o princípio da “complementaridade dos sistemas, privado, público e estatal”. O golpe de 2016 acabou com o sistema público.
As ameaças dos golpistas e dos seus sucessores de acabar com as emissoras da EBC não se concretizaram quando vislumbraram a possibilidade de torná-las instrumentos de propaganda política. O que passou a ser feito em larga escala, como demonstra o acompanhamento das programações, realizado pela Ouvidoria Cidadã da EBC, através de relatórios produzidos e publicados periodicamente.
Apesar de destruída, a comunicação pública, quando voltar a ser implantada no Brasil, não retornará à estaca zero. Os acertos e erros desses nove anos deverão servir de base para a sua reconstrução. Superar as deficiências tecnológicas e editoriais já apontadas (1) é tarefa prioritária. Mas ela só terá sucesso se conseguir fazer com que a sociedade passe a considerá-la como um patrimônio cultural de toda a nação.
* Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é professor aposentado da Escola de Comunicações e Artes da USP e membro do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).
Publicado originalmente no site Comciência, do Labjor.