silencio da midia corporativa

Silêncio do noticiário revela ambiguidade do “oposicionismo” da mídia corporativa

Os jornalões passaram ao largo de graves denúncias sobre um gigantesco esquema de pedofilia do fundador das Casas Bahia, Samuel Klein, e sobre os indícios de conexão do presidente da República com o Escritório do Crime. Leia neste artigo do professor Luis Felipe Miguel, da UnB

Por Luis Felipe Miguel*

Ontem, em boa coluna, a ombudsman da Folha anotou seu estranhamento com o fato de que, exceto por duas colunas de opinião, o jornal ignorou a grave reportagem sobre o falecido Samuel Klein, publicada pela Agência Pública.

São fortíssimas as evidências de que o fundador das Casas Bahia mantinha um gigantesco esquema de pedofilia e foi responsável por violência contra muitas centenas de meninas. O filho, Saul Klein, que reportagem anterior de Monica Bergamo revelou que está sendo processado pelo mesmo motivo, teria simplesmente herdado a estrutura montada pelo pai.

Era como um departamento extra das Casas Bahia, exclusivamente para gerir a pedofilia, com automóveis e helicópteros para transportar as vítimas, seguranças e advogados para amedrontá-las, agenciadoras, enfermeiras etc. Dezenas de processos foram encerrados com acordos de confidencialidade.

Acho difícil que tudo isso se destinasse apenas à satisfação da perversão do dono da empresa. Cheira a um “serviço” destinado a clientes importantes, o que também ajudaria a explicar a prolongada impunidade de algo que era de conhecimento de tanta gente. Mas estou apenas especulando.

É de se perguntar o porquê do relativo silêncio da Folha. Longe de mim desculpar a mãe e a madrasta da menina Ketelen – nem tenho coragem de colocar por escrito o que desejo para elas. Mas por que o jornal faz uma cobertura tão extensa e mesmo, por vezes, sensacionalista do infanticídio cometido por duas ferradas e não julga que seus leitores devam ser informados sobre uma indústria de pedofilia comandada por empresários poderosos e bem relacionados na elite paulistana?

Tudo isso para observar outra ausência da cobertura da Folha, que talvez a ombudsman possa questionar no domingo que vem: o provável contato de milicianos com Bolsonaro (“o cara da casa de vidro”, “Jair”, “presidente”), logo após a morte de Adriano da Nóbrega. A reportagem do Intercept Brasil deixa pouca margem para dúvidas.

Se não fosse pela coluna de Celso Rocha de Barros hoje, o caso teria passado completamente despercebido na Folha.

A ausência, que a Folha compartilha com o Estadão e com O Globo, mostra a ambiguidade do “oposicionismo” da grande imprensa.

Talvez seja a má consciência. As conexões de Bolsonaro com o crime organizado eram bem conhecidas, mas os jornalões preferiram ocultá-las quando aderiram à sua candidatura à presidência.

Como bem lembrou Celso Rocha de Barros, a relação de Bolsonaro com as milícias é um elemento de enorme gravidade da conjuntura política.

Trata-se de um sujeito que, além de não ter nenhum apreço à democracia, morre de medo de deixar o cargo – porque sabe que, se a lei voltar a vigorar no país, seu lugar e o de seus familiares é a cadeia. E, como observa Adam Przeworski em seu (não muito bom) livro Why bother with elections? (Por que se incomodar com eleições?), governantes que sofrem riscos graves de punição não são muito propensos a aceitar a alternância no poder.

E esse sujeito é íntimo de grupos de facínoras armados, que penetram fortemente nas corporações policiais. Como isso pode ser legitimamente descartado do noticiário?

* Luis Felipe Miguel é professor de Ciências Políticas na Universidade de Brasília (UnB)

Texto originalmente publicado em 26 de abril no seu Facebook

 

Para saber mais:

Da Agência Pública: As acusações não reveladas de crimes sexuais de Samuel Klein, fundador da Casas Bahia

Do Intercept Brasil: ‘O cara da casa de vidro’

Coluna de Celso Rocha de Barros: Quantos dos aliados de Bolsonaro nas polícias são gente como Adriano da Nóbrega?

Reportagem de Monica Bergamo: Duas mulheres que acusam Saul Klein de estupro já receberam ‘quantia milionária’ após ameaçar expô-lo, diz advogado

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