Ato de corajosa união de jornalistas contra a ditadura

Um ato de corajosa união de jornalistas contra a ditadura

Veja o depoimento do jornalista Mauro Malin que faz atualmente um levantamento sobre as circunstâncias em que mais de mil jornalistas brasileiros lançaram, num "gesto de coragem coletiva" o manifesto "Em nome da verdade", contestando a versão da ditadura militar sobre a morte do jornalista Vladimir Herzog

Por Mauro Malin

Um dos maiores gestos de coragem coletiva da história do Brasil ficou quase esquecido durante décadas, embora relembrado a cada nova edição do livro Dossiê Herzog: prisão, tortura e morte no Brasil, de Fernando Pacheco Jordão, na dedicatória: “Aos 1.004 companheiros jornalistas de todo o Brasil que, em janeiro de 1976, assinaram o manifesto Em Nome da Verdade, denunciando a farsa do IPM [Inquérito Policial Militar] sobre a morte de Vladimir Herzog e reclamando o esclarecimento do crime”.

A lista dos signatários não foi publicada nas seis edições do Dossiê Herzog publicadas entre 1979 e 2005. Também não o foi em nenhum dos vários livros dedicados à história do crime, cometido no DOI-Codi (Departamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna) de São Paulo no dia 25 de outubro de 1975. Um assassinato que, somado ao de Manuel Fiel Filho, no mesmo local, pouco menos de três meses depois, teve duplo sentido.

De um lado, foi catalisador de um movimento político contra a ditadura militar que se adensava desde os anos de 1972, 1973 e, principalmente, 1974, quando o regime sofreu uma derrota categórica nas urnas. De outro, foi marco da total impunidade de criminosos a serviço do terror de Estado que desde o golpe de 1964 sequestraram, torturaram, estupraram, assassinaram, esquartejaram ou destruíram pelo fogo corpos de presos considerados “inimigos internos”.

Ao longo das décadas, a lista dos 1.004 jornalistas foi publicada incompleta na internet, e com erros – Ivan, em vez de Ivana Migliaccio, Lanning Elnus, em vez de Elwis, por exemplo. Um repositório de nomes que permaneceu como que sepultado pela implacabilidade do tempo.

Nova edição do Dossiê Herzog

Eis a recapitulação do processo que transformou um conjunto esquecido de nomes em matéria viva.

Em meados de 2019 fui convidado por Fátima Pacheco Jordão para coordenar uma nova edição do livro de Fernando (1937-2017). Fátima, socióloga que atuou durante muitos anos no terreno das pesquisas de opinião sobre política e mercado com extrema competência e visão muito atilada, argumentou que as reedições do livro haviam se limitado praticamente a reproduzir o teor da primeira, de 1979, embora a forma tenha evoluído de uma para outra. Todas foram da Global Editora.

Essa sétima edição deveria acrescentar informações tópicas ao insuperável texto de Fernando, detalhes que à época era arriscado ou impossível explicitar. Para que se tenha ideia do risco corrido pelo autor em 1979, após a publicação do livro o casal Pacheco Jordão sofreu ameaças e julgou mais sensato sair do Brasil. Fátima e Fernando passaram uma temporada em Londres, onde já tinham vivido na década anterior, quando também estava lá o casal de amigos muito próximos Vladimir e Clarice Herzog.

Fiz um projeto para a nova edição, iniciativa abrigada pelo Instituto Vladimir Herzog no início de 2020. Entre as propostas, a publicação da lista a que faz referência a dedicatória. Eu sabia, desde 2005, quando o Observatório da Imprensa publicou um especial sobre os trinta anos do assassinato de Herzog, que a lista disponível (publicada na ocasião no site do O.I.) estava incompleta. Pouco passava de 900 nomes.

Certezas e dúvidas sobre a lista dos 1.004

Agora, porém, seria preciso reunir todos os nomes. Ter certeza quanto à inteireza do conjunto. Honrar a dedicatória de Fernando Pacheco Jordão.

No fim do primeiro semestre de 2020 eu e minha mulher, Cristina Konder, jornalista, passamos dias atracados com 29 fragmentos ampliados do fac-símile da matéria paga publicada com destaque na página 15 da edição de 3 de fevereiro de 1976 do jornal O Estado de S. Paulo.

Sob a rubrica Seção Livre se lia: “Os jornalistas e o caso Herzog”. Na linha de baixo, em corpo ampliado: “EM NOME DA VERDADE”. Vinha depois o texto do manifesto, em duas colunas, e abaixo publicavam-se os nomes, em cinco colunas (nessa época a página tinha oito colunas). No pé da última coluna, a nota do sindicato com as assinaturas dos diretores. Tudo cercado por fios.

A primeira certeza foi quanto ao número 1.004. Era exato – mas não óbvio; foi preciso expurgar uma repetição. Outro ajuste decorreu do fato de que o(s) linotipista(s) não seguiram estritamente a ordem alfabética, talvez porque as listas tenham sido juntadas apressadamente.

Mas persistiam (e ainda persistem) dúvidas.

Por exemplo: precisávamos saber os nomes profissionais usados por aquelas pessoas. Os signatários receberam instruções para assinar a lista como se fosse um documento oficial, com o nome completo. E quase todos o fizeram. Mas para sua plena identificação histórica conviria marcar em negrito o nome profissional. Que poderia nem fazer parte do nome de batismo, como no caso de Roberto Marinho de Azevedo Neto (1941-2006), cronista carioca de gastronomia que se assinava Apicius.

Ajuda de signatários

Com o desafio nasceu a curiosidade. Em que cidade cada uma daquelas pessoas (entre as quais, depois de conferir diversas vezes a lista, contam-se 201 mulheres) assinaram o documento?

Foram localizados nomes de redações situadas em várias cidades do Brasil. São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Porto Alegre “e outras capitais” eram as mencionadas por Fernando Pacheco Jordão (tanto quanto se sabe até o momento, jornalistas de Curitiba, Natal e Joinville também assinaram; causa estranheza que não tenham sido localizados nomes de Salvador e Recife, por exemplo).

Quantas já haviam falecido (eram pouco mais de vinte em 2005, num levantamento feito pelo editor do Observatório da Imprensa Luiz Egypto)?

Comecei a localizar signatários. Alguns deles não só me ajudaram como me deram listas de e-mails e telefones para contatos por WhatsApp. Voltarei a essa parte da história. No momento, é preciso reconstituir as circunstâncias em que foi feito o manifesto.

Jornalistas questionam inquérito forjado,

O número de 1.004 assinaturas não foi alcançado logo que começou a circular o documento, redigido com base em análise, por advogados, do IPM instaurado para apurar as circunstâncias do “suicídio” do jornalista. Havia urgência em responder às conclusões forjadas do inquérito, concluído em 12 de dezembro de 1975 e divulgado no dia 19.

Os jornalistas se apressaram. Adotaram a tática de assinar um documento destinado à Justiça Militar por intermédio do Sindicato dos Jornalistas, que se resguardaria de uma previsível intervenção por parte do Ministério do Trabalho caso a iniciativa fosse atribuída à entidade.

No dia 6 de janeiro, com 467 assinaturas, o documento foi enviado à Justiça Militar com uma nota assinada pela diretoria do Sindicato: Audálio Dantas (presidente), José Aparecido, Gastão Thomaz de Almeida, Wilson Lourenço Gomes, Fernando Pacheco Jordão, Moisés Oscar Ziskind e Hamilton Octavio de Souza. E publicado no jornal Unidade, do Sindicato dos Jornalistas.

Continuou a coleta tanto de assinaturas como de dinheiro para uma eventual publicação do manifesto em forma de matéria paga, visto que os jornais mais importantes da época não sinalizavam nenhuma disposição de divulgá-lo no seu noticiário. Foi alcançado o número de 1.004 assinaturas, que eram na verdade 1.005, porque um dos nomes que aparecem na lista do jornal Unidade – Marcelo Soares Monteiro – não saiu na matéria paga. E certamente teriam sido 1.006, porque um jornalista que tem certeza de tê-la assinado na sucursal do O Estado de S. Paulo em Brasília, Carlos Marchi, não figura na matéria paga.

E mais: não 1.006, porém um número ainda maior. Há notícias, dadas pelos jornalistas Oswaldo Luiz Colibri Vitta e Ricardo Paoletti, de que uma vintena de jornalistas da Agência Folhas, onde trabalhavam, assinou o documento, mas não se sabe que destino tiveram as folhas com essas manifestações.

Um retrato da época

Para saber onde trabalhavam os signatários comecei a pedir um pequeno depoimento sobre as circunstâncias em que cada um assinarou o documento. Cidade, idade, como o texto lhes chegou às mãos e o que mais julgassem relevante. Dirigi a pergunta a cerca de cem pessoas cujos e-mails, ou outros meios de comunicação, foram localizados.

Até o momento recebi 70 respostas (e 20 fotos desses depoentes da época em que assinaram o manifesto; outras certamente virão).

Chegaram desde poucas linhas até uma espécie de ensaio escrito por Luiz Cláudio Cunha, com 40 páginas, sobre o apoio da grande imprensa ao golpe militar e à ditadura, contextualização da dificuldade que haveria em colher assinaturas.

São depoimentos tocantes, que cobrem ampla gama de revolta e reflexão sobre a brutalidade da ditadura.

No Dossiê Herzog, Fernando Pacheco Jordão, sempre atento à dimensão política do protesto, destacou nomes que deixavam clara a amplitude do espectro de signatários. Escreveu: “Nem a insanidade vigente poderia tachar de subversivos – rótulo tão usado para os que ousavam protestar – jornalistas como Prudente de Moraes, Neto [1904-1977], presidente da Associação Brasileira de Imprensa, [Carlos] Castello Branco [1920-1993], que abriu exceção em sua obstinada recusa em assinar manifestos para jogar a força de sua reputação em apoio aos jornalistas de São Paulo, Carlos Chagas [1937-2017] e Carlos Fehlberg, ex-assessores de Imprensa de presidentes pós-64, o primeiro de Costa e Silva e o segundo de Médici, e tantos outros”.

O milhar de nomes reunidos naquele protesto agrega figuras que já tinham ou que viriam a ter grande prestígio no meio jornalístico e na sociedade, na companhia dos que apenas exerciam e continuaram a exercer seu ofício. Deixo ao leitor o exame, entre nostálgico e curioso, da lista, publicada em https://vladimirherzog.org/21039-2/.

Permito-me selecionar um depoimento, bem curto mas muito expressivo, entre os já recebidos. O de Carmem Coaracy:

“Trabalhava no Estadão cobrindo o Superior Tribunal Militar [Brasília] e tinha 29 anos. Tinha contato com pessoas que participaram da resistência à ditadura. Penso que esse esclarecimento resume o porquê da minha assinatura.”

Lista dos 70 signatários do manifesto Em Nove da Verdade que já deram seus depoimentos. 

Adélia Borges, Adélia Porto, Adelto Gonçalves, Albino Castro, Airton Ribeiro, Aldo Schmitz (*), Altamiro Souza, Aluizio Maranhão, Ana Maria Tahan (*), Ancelmo Gois (*), Antonio Luiz Bernardes (*), Ateneia Feijó, Aureliano Biancarelli, Belisa Ribeiro (*), Bernardo Kucinski, Carlos Brickmann, Carlos Maranhão (*), Carlos Marchi (* o nome não aparece na lista), Carmen Cagno, Carmem Coaracy (*), Chico Caruso (*), Christina Brentano (*), Edgar Vasques, Eliane Cantanhêde, Flávio Dutra, Gabriel Arcanjo Nogueira, Genilson Cezar de Souza, Geraldo Hasse, Giulia Di Vizia, Jalusa Barcelos, José Augusto Duarte Bezerra (*), José Castello, José Carlos Marão (*), Juca Kfouri (*), Judith Patarra, Lauro Dieckmann, Lilian Newlands, Luiz Cláudio Cunha (*), Mario Alberto de Almeida, Mário Marcos (*), Mario Marona (*), Miguel Jorge (*), Moisés Rabinovici, Nair Seiko Suzuki (*), Nelson Blecher, Nubia Silveira, Octavio Costa (*), Olavo Avalone Filho, Omar L. de Barros Filho, Paulo Antônio Rocha, Paulo de Tarso Riccordi (*), Renato Faleiros (*), Renato Kern (*), Renée Castelo Branco, Rivaldo Chinem (*), Roberto Ferreira, Roberto Müller Filho, Roberto Pompeu de Toledo, Rodolpho Gamberini, Rui Xavier, Sinval Medina, Thais B. Oliveira (*), Tibério Vargas Ramos, Ulisses de Souza, Vicente Alessi Filho, Vilma Amaro, Vilma Gryzinski, Wagner Baggio (*), Wilson Baroncelli, Zuenir Ventura (*)

*Mandaram também fotografia da época

APJor

APJor

A Associação Profissão Jornalista (APJor) é uma organização sem fins lucrativos, criada em 2016 por um grupo de 40 jornalistas, com o objetivo de defender o jornalismo ético e plural e valorizar o papel do jornalista profissional na sociedade brasileira.