Por Antônio Graça*
A desinformação ‒ que tem nas fake news sua expressão mais preocupante ‒ e a crise do modelo de negócios da imprensa tradicional ‒ desencadeada com a revolução digital ‒ são os temas que hoje estão no centro dos debates sobre o jornalismo.
As duas questões são também objeto de dois livros recentemente lançados pela editora Estação das Letras e Cores, na coleção Interrogações. Um deles é “Existe Democracia sem Verdade Factual?”, de Eugênio Bucci. O outro é “A Crise do Jornalismo Tem Solução?”, de Rogério Christofoletti. Ambos os autores são jornalistas e professores.
São obras concisas, como é a proposta da coleção, mas que apresentam um extraordinário poder de síntese e proporcionam uma imersão nos assuntos tratados.
A partir do tema da verdade factual e apoiado nas reflexões de Hannah Arendt, a filósofa e jornalista alemã de origem judaica, uma das primeiras a se ocupar do assunto, Bucci examina diversos aspectos da questão e, em especial, suas imbricações com a democracia.
Questão fundamental
Em tempos de pós-verdade ‒ como já se definiu nossa época ‒ e de profusão de fake news ‒ que já se tornaram uma epidemia geopolítica ‒, a questão é fundamental para a sobrevivência do jornalismo, como demonstra Bucci. Para ele, a verdade factual vem do registro dos fatos e não se confunde com as verdades transcendentes ou com as verdades metafísicas ou religiosas.
Segundo o autor, a verdade factual lida com os acontecimentos, com os quais convivemos coletivamente e com as evidências das demonstrações empíricas mais simples.
“A verdade factual não encerra promessas tão retumbantes, mas, talvez ‒ por não ter a pretensão de impor-se como o universal e como o absoluto ‒ ajude as pessoas a se emanciparem e a guardarem, entre si, padrões racionais e respeitosos de convivência”, afirma.
Sobre a verdade factual como requisito fundamental para o trabalho da imprensa no âmbito da notícia, Bucci cita o jornalista norte-americano Walter Lippmann, que afirmava: “A função da notícia é sinalizar um evento. A função da verdade é trazer luz para os fatos ocultos, relacioná-los a outros, e traçar um retrato da realidade a partir do qual os homens possam atuar”.
Primeiro conhecimento
A partir da citação, Bucci conclui: “Sinalizar um evento quer dizer noticiá-lo, promover um primeiro conhecimento dos fatos – conhecimento transitório e precário. Um bom órgão de imprensa avisa sobre o que se passa e, com isso, ajuda o cidadão a modular suas expectativas em relação ao futuro próximo”.
Ele acrescenta: “No nível dos fatos, dos acontecimentos, dos eventos que todos vemos e que temos condições de verificar e comprovar no uso das habilidades e das faculdades comuns dos seres humanos comuns, não há ninguém que não saiba divisar as distinções entre a verdade factual e a invenção deliberada de falsidades com o objetivo de esconder os fatos”.
Sobre a proliferação das fake news, Bucci afirma que a principal causa é que agora é muito fácil confeccioná-las e distribuí-las. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo (14/10/2019), o autor afirmou: “Hoje, qualquer pessoa, com um celular conectado à internet concentra poder de mídia. As mediações (que cumpriam as funções de curadoria, de depuração e de organização dos sentidos) foram atropeladas. Qualquer um pode pôr em circulação relatos, fotos e toda sorte de falsificações”.
Tem solução?
O livro “A Crise do Jornalismo tem solução?”, por sua vez, também é uma ampla análise das dificuldades por que passa a imprensa tradicional.
Baseado em dados que revelam a trajetória da crise da imprensa norte-americana, iniciada em 1990, e no Brasil, a partir de 2000, Christofoletti analisa os diversos aspectos da questão, como suas causas, conseqüências e possíveis saídas.
De acordo com o autor, em 1990, nos Estados Unidos, a circulação média de jornais impressos em dias de semana (excetuando-se o domingo) era de 62,3 milhões de exemplares. Cinco anos depois, estava quase 7% menor, e, em 2000, a indústria do setor vendia 55,8 milhões de exemplares, 6,5 milhões a menos por dia, um encolhimento de 10%.
No Brasil, de 1990 a 1999, a circulação média diária cresceu 71,4%, saltando de 4,2 milhões de exemplares para 7,2 milhões. Os efeitos da crise dos impressos só seriam sentidos no País depois de 2000, com quedas sucessivas na primeira metade da década e alguma recuperação na segunda.
O susto maior viria em 2017, quando a circulação caiu para 5,66 milhões por dia, 21% menos do que os 7,17 milhões de exemplares por dia de 2016. Entre 2013 e 2017, as perdas acumuladas chegaram a um terço do mercado (33,2%).
Revolução digital
A crise tem como uma de suas causas principais a revolução digital, que revirou os modelos de negócios no setor das comunicações, e fez surgir novas plataformas, como Google, Facebook e Youtube, para onde migraram as verbas publicitárias. Mas ela não se restringiu aos jornais impressos: afetou também emissoras de rádio e TV, cujas audiências estão caindo, e revistas, que estão sendo fechadas.
De acordo com Christofoletti, a crise é complexa, multifacetada e dinâmica. E não é só financeira. “Quando tratamos de crise no setor, precisamos considerar também impactos negativos na confiança depositada nos meios, na relevância do jornalismo, como modo de se informar, em como se dão suas decisões, e como se estruturam seus valores mais básicos. Quer dizer, a crise é financeira, mas também é política e existencial, ética, de credibilidade, de governança e gestão”, afirma.
Pelo fato mesmo de ser complexa e apresentar muitas camadas, a crise da imprensa tradicional exige abordagem multidisciplinar, ousadia e criatividade para enfrentá-la.
Sem fins lucrativos
Como propõe a economista francesa Julia Cagé ‒ citada por Christofeletti e autora do livro Salvar a Mídia: Capitalismo, Financiamento Coletivo e Democracia, ainda não publicado no Brasil ‒, a crise do jornalismo precisa ser enfrentada por organizações que não tenham fins lucrativos e que conjuguem os melhores atributos das fundações e das empresas com capital aberto.
Segundo Christofeletti, a economista aproxima as empresas jornalísticas das grandes universidades internacionais, como Yale e Harvard, que cobram mensalidades e atraem grandes doações.
O modelo de Cagé preconiza a permanente injeção de recursos financeiros e a informação entendida como bem público, a exemplo de fundações como a Scott Trust, que mantém o jornal britânico The Guardian.
Como se vê, a própria lógica do lucro maximizado, que predomina no modelo de negócio da imprensa tradicional, talvez tenha de ser revista. É um desafio e tanto.
Serviço:
Título: Existe Democracia sem Verdade Factual?
Autor: Eugênio Bucci
Editora: Estação das Letras e Cores
Volume: 135 páginas
Preço: R$ 35
Título: A Crise do Jornalismo Tem Solução?
Autor: Rogério Christofoletti
Editora: Estação das Letras e Cores
Volume: 102 páginas
Preço: R$ 30
*Antônio Graça é jornalista, associado e colaborador da APJor