Perfil Professora Cremilda Medina

O jornalismo dos cinco sentidos

Com 50 anos de docência, Cremilda Medina faz, nesta entrevista a Cibele Buoro para o site da APJor, uma avaliação do ensino do jornalismo no contexto da ditadura, da redemocratização e da pandemia. Sua produção acadêmica é hoje referência teórica do ensino em Comunicação Social

Por Cibele Buoro*

Foto Fernanda Rezende/IEA-USP

Cremilda Medina é uma autora consagrada na bibliografia obrigatória dos cursos de jornalismo do país. Seu nome estampa as mais relevantes capas do rol de títulos que formaram, formam e formarão gerações de jornalistas: A Arte de Tecer o Presente, Notícia: um Produto à Venda e Entrevista o Diálogo Possível.

Ocupou – e ocupa – posições importantes em vários espaços profissionais como jornalista, pesquisadora e professora universitária, interessada em constante aperfeiçoamento profissional ao longo de sua carreira, como o título de primeira mestra em Comunicação Social da América Latina, obtido em 1975.

A entrevista para a produção deste perfil de Cremilda Medina ocorreu no dia 27 de julho, à tarde, de modo virtual por chamada do Zoom. Como resposta ao meu pedido, escreveu por email a autora: “como você quer fazer a entrevista, já que a situação atual não se presta ao ambiente presencial de minha preferência?” Nos escritos de Medina lê-se que o bom jornalismo tem como alicerce a “escuta dos depoimentos”, que “em muito contribui para atribuir sentidos a um recorte especial da realidade coletiva”.

Ao longo de suas cinco décadas de docência, publicou 20 livros autorais e mais 55 coletâneas produzidas com alunos e professores. Em mais uma de suas obras Ato presencial, mistério e transformação, lançado em 2016, a jornalista e professora aborda o mistério das transformações ocasionadas pela interação pessoal na seara do jornalismo. Na entrevista presencial, defende ela, há troca entre os participantes e o uso dos cinco sentidos, relevantes para a comunicação. “Não abdico de estar presente, de estar na rua”. Dentro da sala de aula, Medina defende a possibilidade de experiências transformadoras advindas da relação professor e aluno.

Contudo, em tempos de pandemia, nosso encontro possível foi tela a tela. Foi ela quem decidiu pelo dia e horário e, pontualíssima, surgiu no vídeo. Fui sua aluna nos idos do início dos anos dois mil, em uma disciplina de pós-graduação em comunicação, na Universidade de São Paulo (USP), que acontecia uma vez por semana. E é com essa história que desencadeio nossa conversa. Conto um episódio memorável de suas aulas: uma secretária que a acompanhava, sentando-se ao lado da mesa da professora. E, assim, anotava os apontamentos da lousa, as formulações teóricas e os insights de Cremilda Medina. Aquilo sempre me chamou a atenção. Nos primeiros momentos, pensei se tratar de uma aluna, mas não, era a secretária da professora. A sala de aula requer do docente uma entrega intelectual, na qual experiências transformadoras se concretizam. As anotações, de certo, ajudavam a não perder os insights que normalmente premiam os professores em meio aos debates e formulações teóricas.

Ao ter o cuidado de registrar suas formulações intelectuais, Medina demonstrou rigor acadêmico e seriedade. Eu sempre quis lhe fazer essa revelação, oportunizada pela entrevista. Ao ouvi-la, Medina riu um riso de satisfação. Lembrou-se daquele tempo, disse que ter uma secretária seria um “luxo” e provavelmente se tratasse de uma assistente. “Muito obrigada por essas memórias tão afetivas”.

Formanda subversiva

A história de Cremilda Celeste de Araújo Medina no jornalismo brasileiro começa em 1953, quando desembarca no Brasil, aos onze anos de idade. Nascida no Porto (Portugal), em 1942, veio morar em Porto Alegre, com a irmã, quatro anos mais nova, e a mãe. A mudança de país foi provocada por seu tio-avô, Emídio, irmão de sua avó paterna. No início do século XX, Emídio chegou ao Brasil para atuar como ator de teatro, no Rio de Janeiro, e nunca mais procurou a família no outro lado do mundo, até que se passaram quarenta anos. O tio-avô, que beirava os 60 anos de idade naquela época, havia se casado em Santa Cruz do Sul (RS) com uma descendente alemã, proprietária do Hotel Santa Cruz.

No regresso do tio Emídio a Portugal, Medina conta que ele circulou com seu pai, proprietário de um carro, por dois meses. “Eu não sei como meu pai, que trabalhava, tinha duas filhas e que não era um imigrante típico da área rural, mas um sujeito urbano, tramou com meu tio-avô de ir para o Brasil, em 1951”. Como era de praxe naquela época, conta Medina, a família veio depois que o pai se instalou em Santa Cruz, inicialmente.

Mais tarde, a família mudou-se para um apartamento em Porto Alegre, com sacada de frente para o Colégio Farroupilha, no qual Medina estudou. O ensino médio da época, chamado de Clássico ou Científico, ela cursou na escola estadual Júlio de Castilhos. Quando chegou a época do vestibular, o pai não se conformou com a escolha pelo jornalismo. “Para ele, o jornalismo não era opção que se estudasse, então fiz letras ao mesmo tempo, para que ele ficasse um pouco mais calmo, mas na realidade, me entreguei mesmo ao jornalismo”.

Por volta dos 16 anos, estudante do Clássico no Júlio de Castilhos, ouviu na rádio Farroupilha, fundada em 1935, em Porto Alegre, uma crônica sobre menores abandonados de um comissário que atuava na delegacia de menores. “Fiquei muito entusiasmada, fui ao comissário e me apresentei a ele, que deve ter me achado uma guria maluca”, conta aos risos. “Disse que eu gostaria de acompanhar o trabalho dele com os menores abandonados e ele permitiu que eu frequentasse a delegacia. Foi então que decidi que seria jornalista!”. Ao dizer a palavra “jornalista”, Medina a pronuncia com muita ênfase e satisfação. Pergunto a ela se foi o interesse por questões sociais que a conduziram ao jornalismo. “Exatamente isso”, responde.

Na noite do dia 31 de março de 1964, data que dispensa contextualização histórica, formavam-se bacharéis em comunicação social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sete estudantes, entre eles, Cremilda Medina. Os formandos aguardavam para a sessão de fotos e, antes de entrarem para a cerimônia de formatura, o paraninfo, um professor de Ciência Política, “disse de boca de ouvido aos formandos que alguma coisa muito grave estava acontecendo em Minas Gerais. E nós fizemos uma formatura completamente fora do cerimonial clássico, porque não tínhamos um orador”, rememora. “Então, fizemos um jogral e todos falaram de uma maneira bem contundente para a época, que eram os primeiros anos da década de 60, e nós estávamos muito engajados pela trajetória de contestação daquele tempo”.

Por ter quebrado o protocolo, no dia seguinte, a formatura foi assunto de uma nota na imprensa local. Informou o jornal Correio do Povo que “formandos fizeram um discurso bastante subversivo”. Era o dia primeiro de abril de 1964. “Amanhecemos na ditadura e fomos para a rádio da UFRGS fazer boletins de resistência, que foram silenciados às duas horas da tarde, com a chegada dos militares”. A rádio universitária foi fechada e os estudantes expulsos.

Pesquisadora mestre

Em meados da década de 60, Cremilda Medina era jornalista com diploma universitário e com licenciatura em Letras pela UFRGS. Profissionalizou-se na imprensa de Porto Alegre atuando como repórter, até que foi convidada, em 1967, para iniciar a carreira de docente (à época, assistente catedrático) na mesma instituição em que se formou.

Nessa sua primeira vivência dentro das estruturas da academia, foi convidada para ser assistente de um catedrático de nome Salvador Bruno, seu ex-professor na disciplina técnica Jornal Laboratório. Apesar da experiência de Medina em redações profissionais, era do catedrático a primazia de aprovar ou reprovar os textos dos alunos. Se a reportagem agradava, ele dizia “desce”, palavra entendida nas redações como de comando para o texto ser diagramado e incluído na edição do jornal. Quando a reportagem não agradava, Salvador Bruno amassava o papel e o jogava no lixo. “Eu, que havia estudado didática no curso de letras, achava aquilo um horror”. Lá pelas tantas, Medina diz ter se questionado: o que estou fazendo na universidade? “Eu tinha estudado pedagogia e a nova escola, dos anos 60, apresentava o ensino-aprendizado, um processo de pesquisa em que o professor e o aluno constroem um aprendizado, então, eu via aquelas cenas e ficava revoltadíssima!”.

Ainda hoje, a disciplina Jornal Laboratório é uma das mais importantes nos cursos de jornalismo, por propiciar aos alunos a vivência prática do ritmo das redações e da produção de reportagens. Quanto a Salvador Bruno, ele tornou-se o antimodelo de professor para Medina. Um exemplo do que nunca fazer na sala de aula.

Foi nesta época que a professora iniciante deu mais um passo para consolidar sua trajetória como acadêmica e pensadora do jornalismo. Produzir pesquisas era o que mais atraia Medina para a vida universitária e, apesar da experiência prática profissional nas redações, não se sentia satisfeita e buscava mais aperfeiçoamento, uma dos lemas de sua carreira.

“Eu já sabia fazer jornalismo do ponto de vista prático, mas para dar aula de jornalismo não bastava eu iniciar os alunos na parte técnica e fazer um jornal laboratório, rádio jornalismo ou telejornalismo”. Esse foi o pensamento que guiou Medina para a primeira pós-graduação em Ciências da Comunicação da América Latina, anunciada para início de 1971, na Universidade de São Paulo (USP).

A convite do professor José Marques de Melo (1943-2018), coordenador do Departamento de Jornalismo da USP, Medina fixa residência em São Paulo e começa a trabalhar como auxiliar de ensino, no primeiro semestre de 1971. “O motivo da mudança estava voltado à pesquisa, eu queria estudar, sentia a inquietude de estudos e aperfeiçoamento contínuos”. Medina conta que não se aquietava em apenas transmitir aos alunos de graduação as técnicas profissionais e o conhecimento acumulado da área. Tanto que, ao deixar o Sul do país para ingressar na pós-graduação da USP, trouxe consigo um projeto de pesquisa. Havia registrado, em Porto Alegre, o esboço do que constituiria, em 1975, a dissertação de mestrado: “A estrutura da mensagem jornalística”, mais tarde, transformado no livro Notícia: um produto à venda, publicado pela Editora Summus.

São os livros, coletâneas, artigos e pesquisas, produzidos pela disposição e empenho de Medina, que contribuem hoje para a formação dos conhecimentos teóricos para o ensino em Comunicação Social, além de torná-la uma das autoras mais relevantes nos cursos de Jornalismo. A história por trás de suas obras começa na USP, quando era auxiliar de ensino (nome dado naquela época para os docentes). José Marques de Melo, o coordenador do curso de jornalismo, propôs que os professores de disciplinas técnicas escolhessem dar aula de jornalismo informativo, opinativo ou interpretativo. Medina escolhe o jornalismo interpretativo, e o resultado dessa escolha se materializa no seu primeiro livro publicado pelo departamento de jornalismo da USP e que contou com a colaboração do professor Paulo Roberto Leandro: A Arte de Tecer o Presente, entre 1973 para 1974. Nesta obra, a autora propõe que o jornalismo alcance profundidade de captação das informações pela reportagem interpretativa, de modo a se diferenciar da simples notícia, explica Medina. “As ferramentas de trabalho propostas para a reportagem no A Arte de Tecer o Presente é uma questão que eu coloco até hoje”.

No alicerce teórico deste livro estão Marx, Nietzsche e Freud, autores com os quais, como explica Medina, “abre-se uma perspectiva de aprofundamento interpretativo na reportagem jornalística, desdobrando os limites mais estreitos do factual noticioso”. Com os estudos dos símbolos, a partir de Freud, se descobre a complexidade da interpretação. Com Nietzsche, se capta o viés da determinação: toda a interpretação é determinação do sentido de um fenômeno. Já Marx, na visão do materialismo dialético, separa essência de aparência do fenômeno, e ao salientar a contradição entre uma outra, reforça também a interpretação, detalha Medina ao explicar como escreveu A Arte de Tecer o Presente. “As tendências aí agrupadas deram, e dão até hoje, munição para que se pesquise a contribuição da reportagem jornalística na leitura cultural da sociedade, o que nomeio hoje de Narrativas da Contemporaneidade”.

Em meados da década de 70, ao mesmo tempo em que era professora de graduação em Jornalismo na USP, Medina cursava, na mesma instituição, a pós-graduação no período noturno. Para completar o orçamento, trabalhava em empresas jornalísticas desde que chegara a São Paulo, como o Jornal da Tarde, TV Bandeirantes e TV Cultura.

Em 1975, já com o título de primeira mestra da América Latina, é afastada das salas de aula da USP pela ditadura militar. A partir desde episódio, até o ano do seu retorno, em 1986, trabalhou por dez anos na redação do jornal O Estado de S. Paulo. “Sentia muita falta da pesquisa e quando eu retornei, no período da redemocratização do país e da reconstrução democrática, minha linha de estudos foi, sobretudo, no laboratório epistemológico”. Medina volta para a universidade interessada em trabalhar com parceiros, alunos e grupos de pesquisa na ampliação, amadurecimento e aperfeiçoamento da autoria.

Jornalismo autoral

“O jornalismo interpretativo só pode ser exercido quando se investe em autoria, uma autoria ética, técnica e estética. Técnica do ponto de vista de rigor na captação dos sentidos coletivos, ética do ponto de cumplicidade e solidariedade com o coletivo, e estética com uma narrativa transformadora”. É com esse discurso que Medina retorna às salas de aula. Os dez anos de redação na imprensa tradicional trouxeram algumas certezas à autora: a pirâmide invertida, o lead sumário e o título com substantivo e verbo estagnaram no tempo e não mais atendiam às expectativas daquele outro jornalismo que almejava construir.

A literatura, explica Medina, tem uma cumplicidade com o povo por se aproximar da riqueza, da expressão, do coletivo e do ser humano. Na sua livre-docência, obtida pela USP, discutiu como o personagem da literatura espelha o universo mais humano da expressão do cotidiano.

Cremilda Medina é uma pesquisadora da epistemologia. Encontrou no teórico francês Jacques Le Goff convergência e aplicabilidade ao jornalismo interpretativo. Em seus estudos, Medina aponta quatro eixos epistemológicos no tratamento interpretativo do acontecimento no fato jornalístico: o aprofundamento do contexto social, a humanização do fato jornalístico, as raízes histórico-culturais e os diagnósticos e prognósticos.

A esta altura da entrevista, Medina compara a obra A Arte de Tecer o Presente com a cobertura do novo coronavírus. E é para dentro do terreno da epistemologia que a autora arrasta a pandemia. Na sua concepção, faltam às reportagens, “a rejeição das certezas e o lidar com as interrogantes”. Em seguida, Medina faz uma afirmação devastadora para o jornalismo: “os jornalistas estão custando a aceitar que não conseguem convencer e persuadir com suas reportagens sobre o coronavírus”. Assim como custou para o sujeito aceitar, “sujeito, eu digo, como nós que andamos aí no cotidiano”, que a ciência não tem soluções prontas. Para justificar sua resposta, Medina cita a pesquisa da infectologista da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, Sônia Geraldes, sua ex-aluna na pós-graduação da USP.

Geraldes, à época, havia estudado a efetividade das campanhas de prevenção no combate à AIDS no Brasil e no México e, conforme diz Medina, pôs o dedo na ferida: a campanha preventiva é construída em uma linguagem persuasiva, e a persuasão não garante que se faça a prevenção. “As campanhas não são eficientes por causa da linguagem autoritária do sujeito cientista, médico, jornalista, publicitário”.

A autora confirma que, na reportagem investigativa, para se chegar a um diagnóstico ou prognóstico, e apresentar uma informação que sirva ao nosso cotidiano, é preciso rejeitar as certezas e lidar com as interrogantes. Ir a campo é outra vertente fundamental na epistemologia. “Mesmo em contato com a realidade e com os sujeitos da pesquisa do repórter, mesmo que ele se esforce, não chegará a uma conclusão, ou a novas interrogações e interrogantes, que é exatamente o que está acontecendo agora, de uma maneira muito explícita, com relação à pandemia”. Medina ressalta, pela tela do computador, que há de se considerar a complexidade que está à nossa volta, que é difícil de apreender e saber lidar com os conflitos entre as verdades.

De volta ao estudo de Geraldes, a solução para o engajamento da população à campanha de prevenção da AIDS estava nas mãos dos grupos de apoio, nos quais “há partilha, interatividade viva e presencial, com todos os sentidos ali expostos”, explica a autora. “Só dessa forma, ao nu da experiência de cada um e da troca, é possível as pessoas trazerem para fora uma experiência e resolverem tomar certas medidas. Exatamente como é o caso do uso das máscaras”.

Apontamentos do espanto na crise da covid-19 é o título de mais um texto de autoria de Cremilda Medina, publicado no Jornal da USP, período março-abril de 2020. Lá estão registradas as capturas e as reflexões que seu grupo de pesquisa – Epistemologia do Diálogo Social – fez a partir do acompanhamento dos relatos, narrativas e comentários que vêm se sucedendo nas mídias. Escreve a autora, na página 2: “Em meio aos relatos que não aplacam a inquietude e o medo, ainda se encontram vozes científicas que ensaiam armar nexos complexos não só sobre a natureza do vírus como as circunstâncias socioculturais, as geopolíticas e as demografias em que o inimigo opera. Todos os dias, porém, repórteres, comentaristas e âncoras clamam pela voz científica mais reducionista que complexa, mais ‘didática’, persuasiva, do que reticente, aberta à recepção. Há momentos humanizados quando o médico e pesquisador se torna vítima da doença ou, no extremo, é mais um número nos óbitos: então, diante da impotência individualizada, a área médica afunda no espanto comum a todos os habitantes do planeta”.

No mesmo texto, mais adiante, ela afirma que os jornalistas não conseguem apresentar múltiplas leituras da realidade epidemiológica que as abstrações numéricas tentam captar.

Eixos interpretativos

Uma das linhas de pesquisa de Medina são os quatro eixos interpretativos da reportagem jornalística. Para retratar o contemporâneo, é necessário (1) contexto social ou das forças que atuam sobre o factual imediato, (2) a humanização do fato jornalístico apresentado em perfis, histórias de vida ou protagonismo, sobretudo dos anônimos, (3) as raízes histórico-culturais do acontecimento e (4) os diagnósticos e prognósticos das vozes especializadas sobre o tema em pauta.

Medina defende que, antes e durante a mais recente globalização econômica da geopolítica contemporânea, sempre se manifestou a força das identidades e suas raízes no tempo, mas que, no entanto, as narrativas da contemporaneidade – a reportagem interpretativa em particular – passam ao largo dessas significativas forças simbólicas.

Defende também que a linguagem persuasiva é impositiva por partir da concepção de que se convence o outro por meio de argumentos, de dados. Mas “não é assim que acontece!”. Ela justifica que a comunicação não concretiza na linguagem da persuasão. “A linguagem é a troca, a escuta, o ato presencial, e eu acredito que a única possibilidade de colher algum tipo de resultado dessa interatividade é ‘ir a campo em busca de’”.

Além dos livros essenciais nos cursos de jornalismo, Medina é autora de outras coletâneas, entre elas São Paulo de Perfil, Saber Plural, Planeta Inquieto, entre outros, produzidos por seus alunos, professores do curso de comunicação e de outros cursos da USP. Com projeto de livro temático, São Paulo de Perfil reúne as reportagens interpretativas dos autores.

A edição número 8, de 1991, para citar como exemplo, traz reportagens dos alunos do terceiro ano de jornalismo sobre os bairros periféricos da cidade de São Paulo. Esta edição marcava os 25 anos da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP e contou com convênio da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo para envio de 500 exemplares, de uma tiragem total de mil, para serem lidos por alunos do segundo grau. O advogado e bibliógrafo, José Mindlin, da Metal Leve, morto em 2010, à época, adquiriu os 500 exemplares para doação às bibliotecas das escolas públicas. Na apresentação dos textos desta edição, escreveu Medina que o narrador se entregava à busca da compreensão do outro. “A orientação pedagógica propõe vias de expansão da sensibilidade, do rigor racional e da estratégia de um repórter regido pela ética”.

Como ser professora está em seu DNA, Medina não deixou de atender ao caráter pedagógico do projeto: “os estudantes de segundo grau […] confirmam o significado da reportagem na iniciação à cidadania […] Por outro lado, cultiva-se a narrativa das histórias de vida, do cotidiano e da grande saga social, de tal modo que os leitores muitas vezes se identificam com os protagonistas dos livros. Isso alimenta o hábito de leitura no segundo grau, segundo o testemunho de professores que trabalham com o projeto”.

Mais de trinta anos depois do São Paulo de Perfil – a primeira publicação foi em 1987 e chegou a 27 livros – Medina diz que buscou desenvolver o “além da entrevista”, considerado pelo seu grupo de pesquisa como observação-experiência. O “além da entrevista” envolve outros campos empíricos, como a neurociência. A observação, segundo ela, é vizinha da antropologia, que se baseia muito no código linguístico. “Eu acho que nós apreendemos o outro e a sua circunstância muito além do código linguístico e uma área que é muito rica para o jornalismo é a neurociências. Me apeguei a um dos neurocientistas mais rigorosos, António Damásio, que seus últimos livros têm dado subsídios para compreendermos como as coisas partem do toque para a consciência”.

Teoria possível

“Uma coisa Cibele, que eu sempre deixo bem acentuado, bem espinhado, é que qualquer passo do ponto de vista teórico e conceitual que eu dê, está apoiado em uma experiência prática. Se eu digo que é possível, é porque eu experimentei e foi possível”. Em 1990, Medina cria e organiza o primeiro seminário inter e transdisciplinar na USP: O discurso fragmentalista da ciência e a crise de paradigmas. Percorreu por quatro meses vários institutos convidando professores de outras áreas, como física, engenharia, matemática, química, enfim, visitado os departamentos mais estranhos à comunicação social, com o intuito de viabilizar o seminário que debateria a crise dos modelos explicativos, a postura reducionista das formas de apreensão do mundo e o aprisionamento do conhecimento em disciplinas.

“Eu inventei que era possível uma transdisciplinaridade, ou seja, problemas que se enfrentam no jornalismo, devem ser enfrentados também na medicina, como no consultório com o paciente, por exemplo”. Foram quatro meses pensando em compor nexos entre áreas que, aparentemente, não anunciavam afinidades com o jornalismo. Mas de qualquer forma, o seminário aconteceu e lá pelas tantas, um físico do departamento de Física Mecânica e outro do de Física Quântica se desentenderam. Medina se desesperou, afinal, o seminário seria a prova da interdisciplinaridade entre os diversos saberes, mesmo que extremamente discrepantes.

Nas conversas do almoço do seminário, Medina disse ter conduzido a pauta. “Não somos inteligentes por um único sentido, mas pelos cinco”. Ela explicou na entrevista que, os outros sentidos, como o paladar e o olfato, tiveram papel preponderante no entendimento entre os pesquisadores do seminário. Na segunda parte do evento, todos estavam em perfeita sintonia, possibilitando a descoberta de vários elos inter e transdisciplinares, como conta a autora.

Sujeito-Sujeito

Um destes elos descobertos recai no jornalismo e é considerado por Medina como fundamental aos jornalistas: a substituição do sujeito–objeto por sujeito–sujeito. “Isso partiu da Física Quântica”. Ela esclarece que, em uma entrevista, não estamos diante de um objeto, que é a fonte. Estamos diante de um sujeito, então a relação se dá no âmbito do sujeito–sujeito.

Na obra Entrevista, o Diálogo Possível, Medina discute o aspecto dos sentidos nas entrevistas, como se lê no primeiro capítulo: “A entrevista pode ser apenas uma eficaz técnica para obter respostas pré-pautadas por um questionário. Mas certamente não será um braço da comunicação humana, se encarada como simples técnica. Esta – fria nas relações entrevistado–entrevistador –, não atinge os limites possíveis da inter-relação, ou, em outras palavras, do diálogo”. E foi por causa deste livro que Medina foi convida por médicos da Universidade Paulista de Medicina, da UNIFESP, para um debate a respeito da relação médico–paciente.

Qual a possibilidade de o jornalismo apresentar elos inter e transdisciplinares com a medicina? Medina entende que a aproximação, necessária em uma entrevista, pode apresentar dificuldades para o repórter na relação sujeito–sujeito, as mesmas dificuldades na relação médico–paciente. Tanto o entrevistado como o paciente são sujeitos, e não objetos. “O paciente não é um objeto de tratamento”, diz. Foi essa a reflexão nascida naquele primeiro seminário da USP e que gerou o livro O novo pacto da Ciência. Estava provado, enfim, a interdisciplinaridade.

A conversa ultrapassava mais de uma hora quando peço uma revisão crítica do jornalismo. Medina responde que tem observado contribuições renovadoras de autores, e não de empresas. Gilles Lapouge (1923 – 2020) que morreu no dia 31 de julho, quatro dias após a entrevista, foi citado como exemplo de material jornalístico que dosava levantamento de campo com consistência de opinião, mas “não uma opinião a partir de juízos de valor formados à distância, mas uma variação da realidade que ele percorreu como repórter”.

Medina já declarava no livro Entrevista, o Diálogo Possível que o público percebe quando há autoria na reportagem. “O diferencial está na consistência e complexidade dos acontecimentos, incertezas, e não afirmações peremptórias, amplitude de protagonistas e suas circunstâncias e seus contextos. Soma-se a essa receita a escuta sutil de diagnósticos e prognósticos”. É essa a fórmula que Medina rotulou como “narrativa da contemporaneidade”.

Notícias falsas

“Assim que se desbravou o universo das redes sociais, houve a ilusão de que a acessibilidade e o alto patrocínio da informação fossem o caminho para o futuro”, responde a acadêmica, quando questionada a respeito dos ataques aos jornalistas pelo gabinete do ódio da Presidência da República. Medina avalia que este momento, em particular, apresenta-se como uma oportunidade para reencontrar o que é efetivamente a informação jornalística. “A verdade em relação à mentira é uma questão de complexidade de trabalho, porque não significa que um jornalista que trabalha em uma empresa consagrada não produza também fake news. Se ele não é um profissional que se esforça por estudar, pesquisar, para mim é um alarme a ausência de conhecimento histórico e de sensibilidade cultural”.

A saída para o jornalismo, no entendimento de Medina, está em uma fórmula muito antiga: repórter na rua. “O público é um mistério e eu acho que só o contato direto nos faz perceber quem é esse outro”.

Quando Medina estudou jornalismo, nos anos 60, a formação humanística predominava. Disciplinas como Ciências Sociais, Filosofia, Letras, História tinham peso na grade curricular, inclusive, era dentro dessas áreas que o curso de jornalismo acontecia. Nos anos 70, a pós-graduação em comunicação social passa a estudar a fenomenologia da comunicação social e, entre os 80 para os 90, a introdução de novas tecnologias na comunicação social. Essa mudança de rumo empobreceu o jornalismo, avalia Medina. Daí vem sua defesa pelo jornalismo interpretativo que parte do protagonismo humano e anônimo ao grande contexto, esse que revela as raízes histórico-culturais. “O jornalismo precisa buscar as raízes histórico-culturais, porque cada circunstância, cada local e cada situação têm essas raízes. Não adianta aplanar a superfície, isso não é interpretação”.

Jornalismo interpretativo

A resposta que Cremilda Celeste de Araújo Medina oferece para a crise do jornalismo é a reportagem interpretativa: uma pauta que abrace o contexto social, descobrindo os protagonistas deste contexto e suas histórias de vida, captando diagnósticos e prognósticos de especialistas e pesquisadores, além de abordar os traços culturais e históricos do assunto pautado. O jornalista, por sua vez, assumiria o papel do mediador social e agente cultural, autor de uma articulação interpretativa de sentidos.

O livro As culturas populares no capitalismo, de Néstor García Canclini, publicado em 1983, influenciou o olhar de Medina ao lhe oferecer caminhos possíveis para que o comunicador, ou o mediador social, se construa como autor na produção simbólica. A renovação e reestruturação do sentido seriam duas possibilidades da produção interpretativa, tendo o repórter pulso de autoria na mediação de vozes especializadas, um caminho inverso daqueles jornalistas que “administram os sentidos vigentes de vozes oficiais, ideológicos ou ingênuos”.

Cibele Buoro é jornalista e associada da APJor

Para saber mais:

Artigo citado no texto:

Alguns livros da professora Cremilda Medina:

  • Atravessagem – Reflexos e reflexões na memória de repórter, Editora Summus, 2014
  • Ciência e jornalismo – Da herança positivista ao diálogo dos afetos, Editora Summus, 2008
  • Notícia: Um Produto à Venda – Jornalismo na sociedade urbana e industrial, Editora Summus, 1998
  • Entrevista, o diálogo possível, Editora Ática, 1990
  • A arte de Tecer o Presente, Editora Summus, 2003
  • À margem do Ipiranga, CJE/ECA/USP, 1991
APJor

APJor

A Associação Profissão Jornalista (APJor) é uma organização sem fins lucrativos, criada em 2016 por um grupo de 40 jornalistas, com o objetivo de defender o jornalismo ético e plural e valorizar o papel do jornalista profissional na sociedade brasileira.