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O “debate proibido” sobre a regulação da comunicação no Brasil

Em sua segunda edição, o programa Diálogos & Provocações abordou a política de concessões de rádio e TV, com a participação de dois especialistas no assunto: Susy Santos, da UFRJ, e João Brant, do Instituto Intervozes. Leia na matéria de Mara Ribeiro

Por Mara Ribeiro*

Antes da Constituição de 1988, a canetada para quem podia ou não ter concessão de rádio e televisão era uma prerrogativa do presidente da República. A nova Carta transferiu para o Congresso Nacional esse poder, mas os parlamentares nunca regulamentaram os artigos 220 e 221 e as concessões continuaram sendo usadas como moeda política. Desde então, qualquer tentativa de regular as concessões e a distribuição de verbas publicitárias do Estado para o setor — como quis fazer Luiz Gushiken, ministro da Secretaria de Comunicação no governo Lula – sempre foi rechaçada pelos proprietários dos grandes grupos de mídia impressa e de emissoras de rádio e TV.

Mas este é apenas um aspecto de uma questão muito mais complexa, que envolve regulação da mídia, liberdade de expressão, censura, remuneração de conteúdo jornalístico online e códigos reguladores. Para abordar o tema, a segunda edição do Diálogos & Provocações, novo programa mensal da APJor para aprofundar o debate sobre temas como esse, reuniu dois grandes especialistas no assunto: a professora e pesquisadora Suzy Santos, diretora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora do mais antigo grupo brasileiro de pesquisa em comunicação, o Grupo de Pesquisa em Políticas e Economia de Informação e da Comunicação (PEIC-UFRJ); e João Brant, mestre em Regulação e Políticas de Comunicação e doutor em Ciência Política, fundador do Instituto Intervozes e atual diretor do Instituto Cultura e Democracia.

Convidada a enviar um representante, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) declinou do convite. “Um equívoco”, lamentou a mediadora Graça Caldas, jornalista, pesquisadora do Labjor-Unicamp, doutora em Comunicação pela USP e pós-doutora em Política Científica pela Unicamp. “Mesmo com as divergências naturais entre mercado e instituições, temos muito mais em comum para defender, como a liberdade de expressão e a informação de qualidade”, disse ela.

“Herdeiros de uma elite rural”

No Brasil, historicamente, explicou Susy Santos, a resistência à regulação do setor deriva da perpetuação de privilégios: o próprio Estado libera dinheiro público para concessionários de rádios e tevês, geralmente parentes ou amigos de quem está no poder. “Ter uma concessão sempre foi garantia de isenção fiscal, financiamento e publicidade oficial”, disse a pesquisadora da UFRJ. “Sempre foi uma relação de forte dependência dos recursos do Estado. Esse sistema não sobrevive sem o Estado, até porque, hoje, o modelo do financiamento do setor via publicidade não se sustenta em nenhum mercado do mundo.”

Santos também lembrou que os proprietários das emissoras são herdeiros que mantêm as tradições políticas e as estruturas econômicas da elite a que pertencem, “uma elite ainda rural, mesmo que viva nos centros urbanos”. Esse conjunto de fatores fez das concessões uma ferramenta fundamental para a construção da mistificação dessa elite, seja ela política ou religiosa.

A mediadora Graça Caldas perguntou a João Brant quem são esses herdeiros, os proprietários da mídia corporativa brasileira. “Os donos são os mesmos de sempre”, respondeu Brant, sugerindo voltar ao cenário dos anos 1970 para entender o mundo de hoje. “Desde o começo temos a prevalência da ideia de que a comunicação é um serviço privado que deve muito pouco ao interesse público”, disse ele, ao recordar o caso da Rede Globo de Televisão. A emissora entrou no ar na década de 1960, num cenário de privilégios financeiros e tecnológicos e com ajuda do poder público, que tinha na Globo um aliado político importante.

“Estamos criando um monstro”

Data de então o Código Brasileiro de Telecomunicações, que continua o mesmo apesar da evolução tecnológica do setor (TV a cabo, TV por assinatura, streaming, internet). Os proprietários das grandes redes também permanecem os mesmos pelo menos desde 1981. “A Globo tem, então, um crescimento considerável por dois motivos: competência e boas relações”, explicou Brant. “Isso ajudou a trazer recursos financeiros do exterior, para investimentos no parque técnico, e as boas relações com a ditadura militar ajudaram a ampliar sua rede com a transmissão via satélite.”

Mas em 1978, com a crise financeira e a pressão política pela redemocratização do país, começou-se a discutir regras mais duras para estabelecer limites na concentração de concessões e a possibilidade de ampliar a concorrência com a TV Globo. O ministro das Comunicações de então, Quandt de Oliveira, que havia tentado criar regras mais rígidas para as concessões, previu: “Estamos criando um monstro. A Globo está crescendo demais”. Brant relatou que foram recuperadas cartas em que Roberto Marinho, fundador da emissora, cobra apoio do presidente Ernesto Geisel por ser fiel ao governo e reclama das respostas hostis de Quandt de Oliveira.

Apesar das evidências do crescente monopólio da Rede Globo, o governo federal resolveu não fazer nada contra a emissora. Ao mesmo tempo, não distribuiu as outorgas à Excelsior e à Tupi, receoso de que poderia abrir a porta a agentes econômicos que pudessem ser mais críticos à ditadura, como o Grupo Abril e o Jornal do Brasil, por exemplo. Assim, resolveu dar a concessão de TV a Sílvio Santos (SBT) e a Adolfo Bloch (TV Manchete), por serem considerados adversários mais dóceis da ditadura e com menos chances de concorrer com a TV Globo no jornalismo.

A qualidade da transmissão também ajudava a garantir a hegemonia da Globo em termos de audiência. Nessa época, era difícil assistir outra emissora, como a Tupi, pela péssima qualidade tecnológica do sinal de transmissão da programação, em comparação com a Globo. Na década de 1980, consolida-se o poder político e econômico dessa emissora, que já tinha uma audiência majoritária, mantida até hoje, apesar do crescimento das demais emissoras concorrentes.

A quem interessa a regulação?

Com a nova Constituição detinha-se a esperança de mudanças nesse cenário, usando como referência a experiência no exterior, principalmente nos Estados Unidos e na Europa. A ideia era que um órgão independente, que atuasse como defensor do pluralismo e a da diversidade, fosse o responsável para conceder e gerenciar as concessões. “Pluralismo” e “diversidade” permearam por muito tempo a referência para quem buscava a democratização da comunicação. “Queríamos diversidade de pontos de vista, diversidade de voz, regional, de gênero e de propriedade”, explicou Brant. “Mas, na Constituinte, perdemos a oportunidade. Só avançamos um pouquinho.”

De fato, embora o artigo 290 da Constituição e seu parágrafo 5 impeçam a formação de monopólios ou oligopólios dos meios de comunicação, essa formulação nunca foi regulamentada. A Constituição também criou um Conselho de Comunicação Social vinculado ao Senado, mas seu poder é apenas consultivo, não regulador. Uma das visões baseadas na legislação estadunidense é que você deveria limitar a propriedade cruzada entre meios de comunicação, onde o mesmo grupo ou família tem propriedade de rádio, tevê e mídia impressa no mesmo mercado. “Monopólio e oligopólio só são citados na Constituição nesse capítulo. E a lógica do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) e da nova lei econômica era a de garantir a concorrência e evitar abusos.

Por que faz sentido, então, regulamentar a área de comunicações e proibir o oligopólio e o monopólio do setor? Porque não se trata apenas de efeito econômico, não se trata de vender sapatos ou eletrônicos; trata-se do controle do espaço público, do controle das regras do debate público e, portanto, de um pilar da democracia. A sociedade estar bem informada é condição sine qua non para uma democracia efetiva. Ela não será bem informada se a informação vier de apenas uma ou de poucas fontes. É essencial garantir a pluralidade de vozes e a diversidade no setor que influencia diretamente a formação cultural e política da sociedade.

“Empilhando problemas”

Nos últimos dez anos isso mudou muito, lembrou Brant: “A esfera pública mudou. Mais gente tem voz, tem fala. Mas não por isso mudou para melhor”. Ele entende que as mudanças estão organizadas sob a regra de manter a atenção da audiência, com um recorrente sensacionalismo na vida das pessoas, cujo único intuito é prender a atenção – e isso não atende o interesse público: “É um ambiente que não preserva o pluralismo, nem a diversidade, e criou um problema que a gente não tinha antes, um problema de confiabilidade. O jornalismo profissional como referente e organizador da história pública desde o pós-guerra fazia com que a dimensão da confiabilidade não estivesse em xeque como está hoje”.

O novo sistema, baseado nas plataformas digitais, passa por cima de tudo e enfraquece economicamente o jornalismo, em seu lugar central na esfera pública. O jornalismo perde espaço nesse mundo da atenção, que só existe por meio de curtidas e compartilhamentos, e onde todo mundo é produtor e distribuidor. “Não resolvemos os problemas do século XX e estamos lidando com os problemas do século XXI”, lamentou Brant. “Estamos empilhando problemas. A pouca regulamentação existente foi sendo enfraquecida e o domínio maior passou a ser das igrejas e dos grupos políticos organizados. Mesmo com o crescimento dos canais digitais, não houve ampliação do pluralismo.”

A regulamentação prevê que o conteúdo produzido deve atender preceitos de regionalização e localidade, lembrou Brant: “Para que esse preceito seja respeitado, só há dois caminhos: a obrigação de cotas ou uma política de comunicação que obrigue as emissoras a veicular produção regional”.

Em busca de uma TV pública forte

Brant comentou que, até 2006, não existia no Brasil um sistema público de comunicação organizado como tal e regulamentado por lei. Mas isso mudou com a criação da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC). “Foi a primeira tentativa de um projeto de TV pública regulamentado, que preservasse os conceitos de diversidade e pluralidade, ao invés de continuar ocorrendo a distribuição de concessões para as pequenas oligarquias locais”, disse Brant. No resto do mundo, lembrou, robustos sistemas públicos de comunicação nasceram junto com a televisão.

Mas, já em 2007, onerada pelo espólio da emissora educativa, a TVE, e ainda com poucas praças, foi difícil sedimentar o projeto da EBC, que sofreu degradação com os governos Michel Temer e Jair Bolsonaro. Mesmo a criação da Radiobrás, no governo Lula, foi vista como uma ameaça pelas demais emissoras, por estar concorrendo com estas ao publicar notícias de interesse público. Portanto, a tentativa de distribuir a relação de poder também foi criticada pelas mídias da época e o governo recuou. “E, o pior, quando se quer discutir algo a respeito, há claramente um embargo ao debate”, afirmou Brant. Ele lembrou que o congresso de 1998 da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) e o Congresso Brasileiro de Comunicação, em 2001, foram as únicas oportunidades para discutir questões ligadas à regulamentação da comunicação. Havia uma agenda: esses congressos abrigaram o primeiro e último debate público robusto feito com outros atores, como Intervozes e rádios comunitárias. Mas o próprio governo do PT resolveu recuar dessa agenda. O ministro Franklin Martins elaborou um projeto de lei com um grupo, mas em 2011 o governo optou por não avançar neste debate.

E aí acontece uma mudança importante. O governo Dilma se engajou no Marco Civil da Internet e na Lei de TV por Assinatura, que ampliou a produção independente. “Debate é proibido, sabemos”, disse Brant. “Mas a própria FDE comentou que o Brasil precisa rever seu marco regulatório da comunicação. Esse embargo ao debate precisa ser suspenso.”

Coronelismo, fome e voto

Na segunda parte do programa, os temas permearam a Lei do Cabo e o Marco Civil da Internet, iniciativas consideradas bem sucedidas pelos convidados, e também a importância de se voltar a discutir um projeto de tevê pública forte no país. A internet é importante, concordam todos. Mas pensar o sistema de comunicação em geral é fundamental para ampliar a diversidade e a pluralidade.

No Brasil, lembraram, livros como Coronelismo, enxada e voto, de Vitor Nunes Leal Filho, e Geografia da fome, de Josué de Castro, que denunciam as políticas que utilizam a fome como moeda de troca do voto de cabresto, são leituras ainda atuais. “O coronelismo ainda é real, vale lembrar que muitos parlamentares são também coronéis da mídia”, observou Graça Caldas. Em geral, tais figuras políticas são donas de terras, têm condenações por trabalho análogo à escravidão e contribuem para a desigualdade social, a pobreza e a falta de acesso a educação, saúde e moradia dignas.

Para Suzy Santos, é preciso discutir sobre a riqueza, sobre os ricos do Brasil. “É preciso discutir também o papel do jornalista como trabalhador”, ponderou. “Ele dificilmente será dono de emissoras de rádio ou tevê, pois seu salário não permite. Tudo isso permeia a regulação dos meios de comunicação. Quem pode receber concessões ou não. Quais as regras de produção de conteúdo, de contratação de mão de obra etc. Gerar mais empregos e empregos bons, com salários bons, deveria ser uma meta.”

Enquanto a produção de jornalismo, hoje, ocupa só 10% da programação das emissoras, o resto do tempo é preenchido com conteúdos ditos de entretenimento, que pregam a violência contra a mulher, a discriminação e a homofobia, entre outras mazelas, mantendo sua audiência em diferentes canais. “O Estado tem papel de fomento e regulação, papel de formador, promovendo o acesso a visões diferentes”, afirma Santos, lembrando que “a Agência Nacional do Cinema (Ancine), por exemplo, fez um trabalho fantástico na promoção de documentários. Não regular é deixar ao léu. Também é uma regra quando cada um faz o que quer do jeito que acha certo.”

De onde vem o medo da regulação?

Para João Brant, o desafio é mirar o futuro para acertar o presente. É preciso criar um ambiente que não seja da tecnologia, do momento, mas que seja uma regulação do tipo de serviço que se presta. Ele sugere que a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) se antecipe, acompanhe o que está ocorrendo e defina novas regras. Foi assim que surgiu a Lei da TV a Cabo, a Lei da TV por Assinatura e o Marco Civil da Internet.

Brant também acredita que seria interessante uma discussão pública em torno de uma Lei Geral da Comunicação. Cita a Austrália como exemplo a ser seguido na iniciativa de regular o Google: “O jornalismo é uma atividade de interesse público, que sobreviveu até 2010 com o investimento do mercado publicitário”, explicou. “Com a chegada do Google, a verba passou para as mãos de agentes econômicos que não entregam nada. Portanto, para a sustentabilidade do jornalismo é imprescindível a remuneração, pelas plataformas digitais, da produção de conteúdo jornalístico publicada online.”

Como o próprio ex-presidente Lula sugeriu recentemente, os convidados do D&P também acham importante que a sociedade civil – aí incluídos professores e pesquisadores – retome o debate sobre a democratização das comunicações. “Precisamos discutir modelos locais de jornais, os novos fenômenos. Por exemplo, a Netflix não é televisão? É sim. E, quando contrata o Obama, está fazendo política? Está sim”, provoca Santos. “Que tipo de comunicação queremos? Só a comercial? Veja a experiência das rádios indígenas: elas foram fundamentais para manter atualizada a informação sobre a pandemia de Covid-19, coisa que as rádios comerciais não fizeram.”

A sociedade civil e a academia devem fortalecer esses objetivos e observar com atenção o que está ocorrendo. Neste momento, melhorar a realidade nacional é importante, mas a discussão precisa ser ampliada, pois o debate sobre a regulamentação da comunicação é mundial. É importante entender essa economia e sair dessa armadilha de ficar na mão de processos opacos, como são o Facebook e o Google. “Se hoje ainda não estamos à frente desse processo, nosso trabalho agora, como jornalistas e pesquisadores, é de pelo menos estarmos ao lado das principais discussões em torno da comunicação e das novas regulações no Brasil”, concluiu a mediadora Graça Caldas. “Defendendo, prioritariamente, a democracia.”

* Mara Ribeiro é jornalista e diretora da APJor. Texto de Celso Barata. Edição de Graça Caldas e Leda Beck, ambas jornalistas associadas à APJor

 Para saber mais:

D&P nº 2: Políticas de Comunicação: a questão das concessões

Grupo de pesquisa da UFRJ: Políticas e Economia da Informação e da Comunicação (PEIC)

Instituto Intervozes

Artigo de Carlos Castilho na APJor: O fim do “divórcio” entre a academia e as empresas jornalísticas

APJor

APJor

A Associação Profissão Jornalista (APJor) é uma organização sem fins lucrativos, criada em 2016 por um grupo de 40 jornalistas, com o objetivo de defender o jornalismo ético e plural e valorizar o papel do jornalista profissional na sociedade brasileira.