Por Cibele Buoro
Exercer a profissão de jornalista no Brasil de Bolsonaro é enfrentar uma situação excepcional – a pandemia –, e ao mesmo tempo, um momento de excepcionalidade política, avalia o conselheiro da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Laurindo Lalo Leal Filho. Os ataques do presidente da República aos veículos de imprensa reverberam em agressões aos repórteres e equipes nas ruas. Somam-se a esse cenário perigoso as demissões e reduções de salários.
“Os jornalistas de todo o mundo vivem uma cobertura de guerra contra um inimigo invisível, o vírus, o que já é muito difícil, mas no caso do Brasil, essa dificuldade é multiplicada pelo fato de termos um governo irresponsável com relação à pandemia e agressivo em relação aos jornalistas”, diz Lalo, que completa: “Os ataques que partem do presidente da República são acompanhados por criminosos que compactuam das posições de um governante fascista e que, todos os dias, estimula verbalmente a ação violenta de seus seguidores contra os jornalistas”.
O conselheiro da ABI chama a atenção para o momento histórico sem precedentes pelo qual passam os jornalistas. “Nunca houve uma situação em que foi preciso enfrentar três ameaças juntas”. Com décadas de profissão, Lalo se recorda de um episódio na ditadura, quando o então comandante militar de Brasília, Newton Cruz, foi agressivo com um jornalista, como mostra a imagem abaixo, reproduzida do documentário Céu Aberto, de João Batista de Andrade, e que há tempos tem ampla repercussão nas redes sociais¹.
Comparando a atitude de Newton Cruz ao confronto que os jornalistas enfrentam hoje nas ruas e as agressões de âmbito moral em suas páginas pessoais, tratou-se de uma “situação pontual, e não generalizada como agora”, afirma o conselheiro da ABI, pois todos os dias Bolsonaro se manifesta contra os jornalistas. “E há um detalhe: Newton Cruz não era o presidente da República”.
A repórter do jornal Folha de S. Paulo, Patrícia Campos Mello – profissional prestigiada e reconhecida pelos pares como uma das melhores jornalistas do país -, revelou em 2018, entre o primeiro e segundo turno das eleições presidenciais, um esquema de compra de pacotes de disparos de whatsapp por empresários apoiadores de Bolsonaro.
A matéria, resultado de investigação por parte de Patrícia, tinha o potencial para anular o pleito, que deu a vitória a Bolsonaro, por caixa dois de campanha, considerado crime eleitoral. Depois da publicação da reportagem, Patrícia foi agredida e insultada nas redes sociais.
Xingamentos de teor sexual e difamatório partiram de bolsonaristas, e ainda não cessaram. No início de 2020, na CPI das Fake News, o depoimento de Hans River, um ex-funcionário da Yacows, agência responsável por fazer disparos de mensagens em massa por whatsapp, gerou repercussão e perplexidade social. Segundo ele, Patrícia teria se insinuado para obter informações, o que foi imediatamente desmentido pela jornalista.
Em vídeo publicado em seu Instagram, Patrícia abriu ao público a troca de mensagens que manteve com sua fonte, provando que o convite de conotação sexual e misógino havia partido dele. Logo após o depoimento calunioso de River, Bolsonaro foi protagonista de frase inaceitável por quem deveria preservar a honra, a dignidade e o decoro do cargo de presidente da República².
Em escala ascendente, os episódios violentos e sem precedentes envolvendo os jornalistas se intensificaram. Entidades como Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), sindicatos de todo o país e a ABI, precisaram se levantar na defesa dos profissionais, em uma ação como raras vezes na história da imprensa foi necessária³.
“Presidentes da República se referindo dessa forma aos jornalistas eu acredito que em nenhum momento da história, nem na ditadura chegaram a esse ponto. Esse é um momento único. E é gravíssimo!”, diz Lalo. Na democracia há críticas à imprensa, inclusive por parte de autoridades, mas o que Bolsonaro faz é agressão, “uma característica muito peculiar desse governo”.
Ainda segundo o conselheiro da ABI, um trabalho que já estava perigoso por conta da COVID-19, se tornou ainda mais, pela atuação da base eleitoral bolsonarista de “índole violenta e miliciana” e que expõe fisicamente os jornalistas. Em meados de maio circulou pelo whatsapp um vídeo o qual profissionais do sindicato dos jornalistas de Minas Gerais denunciavam uma pichação na qual se lê: “Jornalista bom é jornalista morto. Colabore com a limpeza do Brasil matando um jornalista por dia”.
“Jornalista bom e jornalista morto”,
pichação da base eleitoral de “índole violenta e miliciana”
e que expõe fisicamente os jornalistas
Os insultos e ameaças que diariamente enfrentam os jornalistas que cobrem o Palácio do Alvorada é mais um exemplo da ascensão da violência aos profissionais. A falta de segurança e o ambiente hostil fez emissoras e veículos, como a Folha de S. Paulo, suspenderem a cobertura no local. No dia 25 de maio, o Grupo Globo anunciou a decisão, alegando a postura cada vez mais agressiva dos apoiadores do presidente:
“Como a animosidade dos militantes tem sido crescente, e sem que haja providências por parte das autoridades para proteger os jornalistas, o vice-presidente de Relações Institucionais do Grupo Globo comunicou a decisão, por carta, ao ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno”, como se lê em reportagem no G14.
No dia seguinte, 26 de maio, uma terça-feira de outono, o apresentador e editor chefe do Jornal Nacional, Willian Bonner, anunciava que ele e sua filha receberam mensagens em seus whatsapp´s de um número de origem em Brasília. O conteúdo trazia dados dos CPFs dos filhos, seus pais e irmãos5.
Além das agressões e intimidações, a profissão de jornalista tem sido desrespeitada e debochada por Bolsonaro. Prova disso foi quando o presidente surgiu para seu matinal embate com repórteres ao lado de um humorista, atribuindo a ele a função de explicar o PIB fraco de 2019, que foi de 1,1% naquele ano, menor em relação aos períodos anteriores6.
Fantasiado de Bolsonaro, o humorista riu da situação e ofereceu bananas aos jornalistas, que deixaram o local, como informou o jornalista do Jornal Valor Econômico, Matheus Schuch.
A revalorização do jornalismo
Desde que assumiu a Presidência, Bolsonaro mira a imprensa para desacreditá-la. Em outubro de 2018, logo após a apuração das urnas, decidiu não receber os jornalistas para o primeiro pronunciamento como vencedor do pleito, como vinha acontecendo desde a redemocratização. Presidente eleito pelo PSL, fez pronunciamento ao vivo por suas redes sociais. Desde então, vem atacando, principalmente, as reportagens da Folha de S. Paulo. “Lixo”, “Jornal de M.”, são alguns dos termos com os quais o presidente se refere ao veículo.
A pandemia fez as pessoas buscarem informações confiáveis.
O próprio Bolsonaro teve de incluir o jornalismo entre as atividades essenciais
Em meio ao embate com jornalistas, veio a pandemia. O cenário até então era a ofensiva para derrotar e desmoralizar a imprensa, tendo como centro propulsor de notícias falsas a própria Presidência da República, ocupada por um senhor que milita de forma contumaz contra o jornalismo que apura e noticia o que é de interesse público, diz o presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo e vice-presidente da Federação Nacional dos Jornalistas, Paulo Zocchi.
“Estávamos enfrentando uma maré difícil e, com a pandemia, vimos um fenômeno acontecer”. O fenômeno, segundo Zocchi, é a revalorização da imprensa. “A pandemia fez as pessoas buscarem informações confiáveis”.
Na contramão do que Bolsonaro desejava – que as notícias fraudadas (as fake news) ocupassem o espaço do jornalismo profissional – no dia 22 de março, o presidente foi obrigado a baixar um decreto que definiu a imprensa como atividade essencial de combate à pandemia7. “Podemos considerar esse decreto como um elogio à nossa atividade e vindo de quem menos se esperava”, afirmou Zocchi.
Falta o “enfoque social”
Na avaliação da presidenta da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), Maria José Braga, os veículos aumentaram o tempo de noticiário sobre a COVID-19, auxiliando no trabalho educativo de como o cidadão deve se proteger da contaminação. Porém, muitas pautas têm sido esquecidas. “Falta o enfoque social”. Para Maria José, reportagens com foco nas populações com dificuldades para manter o isolamento e se manterem financeiramente ainda são insuficientes.
A ausência de informações sobre a pandemia nos países africanos, os esforços das comunidades de vários locais do país que estão, sozinhas, trabalhando pela prevenção da doença, os quilombolas e as populações de rua são pautas pouco trabalhadas, diz a presidenta da FENAJ. Ela explica que, após a pandemia, os índices de verificação de audiência revelaram que os veículos tradicionais estão sendo mais acessados, o que demonstra a revalorização do jornalismo.
Na apuração de rua, os jornalistas correm o risco de se contaminarem. Logo no início da pandemia, em março, as redações de todo o país receberam da FENAJ e dos sindicatos um protocolo de medidas de segurança para que fosse implantado imediatamente, relata Maria José. Entre as recomendações constava a dispensa ou transferência para domicílio de todos os jornalistas dentro do grupo de risco. O básico recomendado foi o fornecimento de álcool em gel, máscaras e distanciamento entre as mesas nas redações.
As primeiras mortes
As primeiras mortes de jornalistas começaram a ser noticiadas em meados de abril. Entre as vítimas estavam Roberto Fernandes, de 61 anos, comentarista da TV Mirante, afiliada da Rede Globo no Maranhão. Ainda em abril, o produtor especial do Fantástico e editor-chefe do Jornal Nacional, Luís Edgar de Andrade, morreu por COVID-19.
Redação do SBT era epicentro do coronavírus
na cidade do Rio, de acordo com Silva, ex-editor
de imagem da emissora, vítima da doença
A morte do editor de imagens do SBT, José Augusto Nascimento Silva, gerou repercussão. O jornalista foi contaminado dentro da emissora de Silvio Santos e acusou a empresa de ser negligente ao determinar que funcionários com casos suspeitos continuassem trabalhando. Em áudios no whatsapp, Silva apontava o SBT como o “epicentro do coronavírus na cidade do Rio de Janeiro”. Na redação do Rio, vários funcionários apresentaram os sintomas da doença. Além do Rio de Janeiro, a FENAJ também recebeu denúncias do Ceará.
No dia 27 de abril morreu o jornalista esportivo Alfredo Menezes, de 72 anos, em São Luís, por COVID-19. Em 30 de abril, em Florianópolis, foi Renan Antunes, aos 71 anos. No dia 2 de maio, vítima do coronavírus, morre o jornalista da Rádio USP, Marcelo Bittencourt, com 68 anos. Em 8 de maio, foi o diretor teatral e jornalista Jesus Chediak, aos 78 anos. No Pará, no dia 15 de maio, morre Uliana Motta, jornalista, aos 33 anos. Pelo mundo, morreram muitos jornalistas.
O presidente da Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência (RedeComCiência), André Biernath, conta que, quando a pandemia começou a ficar mais séria no Brasil, os jornalistas receberam a orientação de trabalhar de suas casas.
Quem atua nas editorias que não compõem o rol das notícias hard news – situação diferente dos profissionais que cobrem as atualizações diárias da COVID-19 em hospitais, governo e ministério – consegue respeitar o isolamento social. Reuniões de pauta, entrevistas, revisão dos textos e fechamento têm acontecido remotamente, por whatsapp ou plataformas de chamadas de vídeo, diz Biernath. “Temos feito tudo à distância e está funcionando bem, até porque somos uma equipe pequena”.
Afastar das redações todos os profissionais que apresentem sintomas e os que tiveram contato com essas pessoas é uma recomendação que integra o rol de procedimentos da Organização Mundial de Saúde e endossados pela FENAJ e sindicatos de todo o país.
Zocchi explica que uma das propostas apresentadas pelo sindicato da categoria no estado de São Paulo foi dividir a redação em duas ou três equipes, sem que se encontrassem, de forma que se uma equipe se contaminar, haveria outra para substituí-la. “A proposta foi uma maneira encontrada para preservar o trabalho jornalístico e reduzir a chance de contágio com uma parte da redação em casa”.
Para Biernath, os jornalistas devem sempre se unirem para exigir medidas de proteção diante da pandemia da COVID-19. “Claro que somos um serviço essencial e quando for necessário irmos às ruas, temos de exigir proteção e isso pode ser feito por meio dos sindicatos e associações de profissionais”.
Empresa não informa contaminações
A contaminação de jornalistas da Record do Rio de Janeiro se intensificou pela política da empresa em só afastar quem apresentasse sintomas. Em poucos dias, várias pessoas se contaminaram. Segundo Zocchi, a empresa não é transparente, pois não informa internamente quem está contaminado alegando privacidade, quando todos têm o direito de saber, como forma de evitar a disseminação do vírus, explica Zocchi. “O direito coletivo está cima do direito individual de não informar e a empresa tem essa obrigação”.
Na avaliação do jornalista e produtor de conteúdo da TV Aparecida, Fábio Soares, as empresas de comunicação têm obrigação legal de zelar pela integridade de seus funcionários, sobretudo no exercício de suas atividades.
O uso de máscaras não é suficiente para a segurança dos jornalistas, diz Zocchi. O ideal no trabalho de rua é o distanciamento social, o não compartilhamento de equipamentos e o trabalho estável entre a mesma equipe, aumentando a proteção e reduzindo o contágio quando compartilham o mesmo carro em dias seguidos, explica.
Higienizar os microfones dos entrevistados, não se aproximar de aglomerações ou de pessoas, evitar o quanto por possível as entrevistas presenciais são medidas que vão sendo descobertas e adotadas nas redações, segundo o presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo.
Desemprego e serviço essencial
Em meio à pandemia, a Medida Provisória 936/2020, que dispõe sobre questões trabalhistas complementares para enfrentamento do estado de calamidade pública imposto pelo coronavírus, foi apresentada pelo governo como política de “preservação” dos empregos. A redução proporcional de jornada e de salário e a suspensão temporária do contrato de trabalho estão previstas na MP assinada por Bolsonaro no dia 1º de abril.
“Como se não bastasse a pandemia, os jornalistas têm de enfrentar relações de trabalho cada vez mais precarizadas”, ressalta Lalo, para quem os patrões estão aproveitando a situação para reduzir salários, demitir profissionais8.
Conforme publicou o site Poder 360, vários grupos de comunicação, entre eles O Dia, Editora Globo, SBT, Correio Braziliense, Record, Band, Editora Abril, Folha, reduziram os salários de seus profissionais em 25%.
Nos três primeiros meses do ano, a FENAJ registrou 141 ataques de Bolsonaro aos jornalistas. Quantos ainda teremos?
¹ https://www.youtube.com/watch?v=IWuggz3aWhw
² https://noticias.uol.com.br/videos/2020/02/18/bolsonaro-insulta-reporter-da-folha-ela-queria-dar-o-furo-0402CD99366AD8B96326.htm
³ https://fenaj.org.br/nota-oficial-fenaj-se-solidariza-com-jornalista-patricia-campos-mello-e-repudia-mentiras-e-ofensas-em-cpmi-das-fake-news/
4 https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/25/falta-de-seguranca-faz-jornalistas-do-grupo-globo-deixarem-plantao-no-alvorada.ghtml
5 https://oglobo.globo.com/brasil/globo-repudia-campanha-de-intimidacao-william-bonner-1-24446333
6 https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/03/04/bolsonaro-poe-humorista-para-responder-sobre-pib-fraco.ghtml
7 https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/03/22/bolsonaro-poe-imprensa-como-atividade-essencial-durante-combate-a-covid-19.htm
8 https://ponte.org/na-pandemia-empresarios-querem-reduzir-salarios-de-jornalistas-em-ate-70/
http://www.sjsp.org.br/noticias/editor-da-istoe-e-demitido-por-whatsapp-porque-ficou-em-casa-devido-a-gripe-532c
http://revistanordeste.com.br/noticia/carta-do-diretor-geral-da-globo-prepara-equipe-para-demissao-em-massa-e-cortes-de-salarios/