Julgamento de Julian Assange

A arquitetura de um ato jurídico que atenta contra os jornalistas

Com a aproximação da sentença que pode condenar Julian Assange a 175 anos de prisão, falta empenho da grande imprensa mundial pela liberdade do jornalista. É preciso resistir à sentença de morte que os Estados Unidos querem impor a um dos pilares do jornalismo, que é o direito à informação

Por Cibele Buoro*

“Em meu trabalho como jornalista, lutei contra guerras e para forçar os grupos poderosos a prestarem contas ao povo. Por meio desse trabalho, aprendi a dinâmica da ordem internacional e a lógica do império. Vi países pequenos sendo oprimidos e dominados por países maiores ou infiltrados por empreendimentos estrangeiros e forçados a agir contra os próprios interesses.”

Julian Assange era asilado na Embaixada do Equador, em Londres, quando escreveu essas linhas, em janeiro de 2013, para o Prefácio para a América Latina, capítulo que integra a obra de sua autoria: Cypherpunks, liberdade e o futuro da Internet, publicada pela Editora Boitempo no mesmo ano.

Assange revolucionou o jornalismo ao fundar o WikiLeaks, organização jornalística que viabilizou, pela tecnologia, a publicação de documentos secretos que revelam má conduta, corrupção, opressão, crimes e as violações de direitos humanos de governos, empresas e instituições. O WikiLeaks trouxe fôlego novo às reportagens investigativas quando garantiu um canal seguro aos denunciantes para envio de informações de interesse público.

As revelações do WikiLeaks garantiram o exercício do princípio fundamental do jornalismo: o amplo direito à informação. E não só isso – o que já seria muito quando se enfrenta um sistema opressor –, o WikiLeaks desmontou a estrutura subserviente de produção e consumo da informação. Permitiu que conhecêssemos as intenções, estratégias e atos criminosos de órgãos políticos, instituições e governos, constituídos para garantirem os direitos civis, a participação popular na condução do Estado, a paz, o voto, o direito de escolher o rumo de nossas vidas. Para ilustrar, lembre-se de qual seria o destino dos royalties do petróleo no governo Dilma Rousseff, espionada pelas agências de Inteligência dos Estados Unidos, de Barack Obama. É assim no jornalismo: documentos vazados que desvendem crimes devem ser publicados.

E por fazer jornalismo, violaram arbitrariamente a liberdade de Assange, que aguarda a decisão sobre sua extradição em uma solitária. Como se não bastasse a violação aos direitos humanos, o jornalista vem sendo submetido, pela Justiça do Reino Unido, a situações de torturas similares aos tempos da Inquisição e do Absolutismo.

Precedente perigoso

Caso seja deferida a extradição de Assange – que é australiano – para os Estados Unidos, estará aberto um precedente dos mais perigosos para o exercício do jornalismo no âmbito do Direito Internacional da Extraterritorialidade, que permitiria a uma nação soberana impor suas leis sobre outra nação soberana, afirma o jurista Martonio Mont´Alverne Lima. “Aplicar a lei de um país em outro é uma violação clara de soberania”.

Ele explica que os Estados Unidos poderão requerer a extradição de jornalistas de qualquer parte do mundo para lá serem julgados. O Brasil, que não extradita pessoas para países que condenam à prisão perpétua ou pena de morte, assistiria sua Constituição desrespeitada por outra nação. Dessa forma, uma reportagem com dados vazados ou sigilosos permitiria aos Estados Unidos extrapolarem suas fronteiras para levar um jornalista brasileiro aos bancos da Corte norte-americana. “É um precedente perigoso e que chegará no Brasil tão rápido que nem imaginamos”, afirma Lima.

Para o também jurista Pedro Serrano, o caso Assange apresenta características de um processo judicial de exceção que se sustenta no argumento da segurança nacional, do terrorismo e da espionagem. “O pedido de extradição é um caso típico de lawfare”, diz Serrano. O lawfare usa a estrutura do poder judiciário como máquina de guerra contra opositores políticos, nos moldes como ocorreu a prisão do ex-presidente Lula: as provas dos crimes que o acusavam não foram apresentadas, o privaram de um julgamento justo, com juiz natural e imparcial, para impedi-lo de concorrer às eleições de 2018. Na avaliação de Lenio Streck, as condições de prisão de Assange ferem os princípios civilizatórios e o que se conquistou até então em termos de Direito Constitucional.

“O Caso Assange nos obriga a reivindicar os valores da liberdade de imprensa, pluralismo político e livre manifestação de pensamento”, diz Lima. Ainda segundo ele, caso a extradição ocorra, inaugurará uma era de perda de garantias para várias atividades profissionais. Outra preocupação de Lima é com a capacidade do “ambiente constitucional” de proteger a liberdade de manifestação de pensamento e pluralismo político.

Preso Político

Assange está detido em uma prisão de segurança máxima e passa 23 horas e meia de seu dia em cela solitária, sem acesso a nenhum meio de comunicação, o que viola as regras humanitárias internacionais. Para o jurista Martonio Mont´Alverne Lima, chama a atenção que a violência contra Assange e o abuso por parte do Reino Unido são crimes que podem permanecer impunes perante a comunidade internacional.

Representantes do Lawyers for Assange solicitaram, em diversas ocasiões, a transferência do jornalista para uma prisão na qual possa, ao menos, ter contato com outras pessoas e dessa forma amenizar o sofrimento físico e psíquico de quem já está recolhido por instituição carcerária.

Sara Vivacqua, advogada que acompanha o caso Assange em Londres, diz que ele não tem acesso a médicos e sua saúde está debilitada, porém, é a saúde mental do jornalista que mais a preocupa. Ao assistir as audiências de Assange de modo remoto, ela notou sua dificuldade em pronunciar palavras. “Quando a câmera do tribunal o focalizou de relance, o vi exaurido”. Os Lawyers for Assange , Doctors for Assange and Asylum for Assange temem que Assange não consiga levar essa luta até o fim, mesmo que vire o jogo. O julgamento da extradição em primeira instância começou em fevereiro e terminou no dia 29 de setembro. A defesa poderá recorrer à Suprema Corte, o que poderá arrastar o julgamento por muitos anos. “As condições de prisão de Assange o permitirão resistir todo esse tempo?”, indaga Sara.

Em entrevista para a TV Comunitária do Rio de Janeiro, em 5 de outubro, John Shipton, pai de Julian Assange, conta que foi uma das poucas pessoas autorizadas a ocupar os cinco lugares reservados para o acompanhamento das audiências. O adjetivo que ele usou quando perguntado sobre o julgamento do filho foi “horrível”. A possibilidade de Assange ser condenado a 175 anos de prisão atemoriza o pai. Como o veredicto poderá ocorrer no dia 4 de janeiro de 2021, com a apelação julgada entre os meses de maio e junho, o que mais preocupa Shipton são as condições de saúde do filho. “Já são onze anos de detenção arbitrária e, neste último, está vivendo em uma prisão de segurança máxima, isolado de tudo”, disse ele na entrevista a Moysés Corrêa, da TVCRIO, com a participação da jornalista Leda Beck, associada da APJor.

Crime de espionagem de 1917

As 18 acusações atribuídas a Assange estão baseadas em uma lei norte-americana de 1917, a Lei Contra a Espionagem, criada para condenar dissidentes traidores na Primeira Guerra Mundial. Nos últimos 20 anos essa lei foi aplicada contra funcionários públicos federais que revelaram informações secretas a países inimigos dos Estados Unidos. Mas Assange, como jornalista, tem um compromisso com o direito à informação dos cidadãos e não pode ser julgado por traição. É preciso defender o mais importante princípio do jornalismo.

Os juristas apontam uma série de irregularidades no processo, como cerceamento à ampla defesa, ausência do devido processo legal, falta de objetividade na descrição da conduta criminosa e a suspeição da juíza do caso.

Sara Vivacqua relata que a juíza Lady Emma Arbuthnot, magistrada-chefe em Westminster, mesmo questionada pela defesa de Assange, não apresentou as provas da conduta criminosa do WikiLeaks. Além disso, continua a advogada, ao longo do processo, as acusações contra Assange foram alteradas sem que o réu pudesse conhecer os crimes pelos quais responde, violando o princípio do devido processo legal. “Um dos advogados recebeu, um dia antes do julgamento, um documento com mil páginas para imprimir em casa, enquanto novas acusações vão sendo inseridas contra Assange”, conta Vivacqua para demonstrar os atos ilegais do tribunal para cercear a defesa.

Na avaliação de Lima, trata-se de um conjunto de grave ruptura dos direitos humanos estabelecidos nos tratados internacionais, com consequências gravíssimas. Segundo ele, o que os Estados Unidos não puderam fazer em seu próprio território, encontraram no Reino Unido “a instrumentalização da justiça para a realização dessa vingança contra Assange”.

Cypherpunks libertários

Julian Assange foi definido por seu pai como um “polímata, habilidoso com matemática e física, o que o levou naturalmente a trabalhar com computadores”.  Assange defende que o mundo deve se conscientizar da ameaça da vigilância sobre países como o Brasil, produtor de petróleo. A vigilância, escreve o jornalista no livro Cypherpunks, não constitui um problema apenas para a democracia e para a governança, mas também representa um problema geopolítico.

“Os cypherpunks originais, meus camaradas, foram em grande parte libertários. Buscamos proteger a liberdade individual da tirania do Estado, e a criptografia foi a nossa arma secreta. Isso era subversivo porque a criptografia era de propriedade exclusiva dos Estados, usada como uma arma em suas variadas guerras. Criando nosso próprio software contra o Estado e disseminando-o amplamente, liberamos e democratizamos a criptografia, em uma luta verdadeiramente revolucionária, travada nas fronteiras da nova internet. A reação foi rápida e onerosa, e ainda está em curso, mas o gênio saiu da lâmpada”, lemos na página 22 do livro de Assange.

Liberdade e democracia são valores indigestos para os sistemas totalitários de poder. A criptografia é defendida por Assange contra a tirania dos impérios e para a conquista das liberdades civis individuais como a soberania, a independência de países inteiros, a solidariedade entre grupos com uma causa em comum e a possibilidade de emancipação global. Ambicioso? Utópico? Os propósitos de Assange respondem por sua prisão.

WikiLeaks revoluciona o jornalismo

Criado em 2006, o WikiLeaks revelou, um ano mais tarde, um manual de sistemáticos métodos de tortura impostos para os soldados responsáveis pela custódia dos prisioneiros do Campo de Detenção da Baía de Guantánamo, para o qual eram levados os acusados de atos terroristas contra os Estados Unidos, que intensificaram a violência depois dos atentados às Torres Gêmeas, em 2001. Estava anunciada a guerra contra o terror.

Mas o WikiLeaks passou de fato a incomodar em abril de 2010, quando os crimes de guerra no Iraque e Afeganistão foram expostos ao mundo. Documentos secretos norte-americanos foram vazados pelo então militar transexual do exército norte-americano, Bradley Manning (hoje Chelsea Manning), que servia no Iraque à época. O primeiro vazamento foi um vídeo de dezessete minutos com cenas de soldados dos Estados Unidos a bordo de um helicóptero atirando em doze civis na capital do Iraque, Bagdá, no dia 12 de julho de 2007.

Era uma amostra de como o império norte-americano operava seus crimes de guerra contra a humanidade. Entre as vítimas estavam duas crianças e dois jornalistas da Reuter, Namir Noor-Eldeen e Saeed Chmagh, que tiveram suas câmeras confundidas com armamentos. A Reuters tentou por diversas vezes obter as imagens do assassinato dos jornalistas por meio da Foia (Freedom of Information Act) a lei norte-americana de acesso à informação, mas nunca foi atendida pelos Estados Unidos.

Ainda em 2010, em julho, o WikiLeaks publicou noventa mil páginas com informações dos relatórios de guerra no Afeganistão. Os documentos revelaram que os Estados Unidos ocultaram massacres violentos cometidos pelos Talibãs contra mais de dois mil civis, além de mais outras 195 que morreram nas mãos das forças de coalização, que acreditavam se tratar de terroristas suicidas. Os relatórios revelaram também as buscas por Osama Bin Laden. O impacto destes vazamentos era estrondoso e estampou as capas dos jornais The New York Times, The Guardian e Der Spiegel.

Foi então que as perseguições políticas a Assange deram início. Em agosto de 2010, um mês após a publicação das atrocidades cometidas no Iraque, surge na Suécia um processo acusando Assange de crimes sexuais baseado no testemunho de duas mulheres com ligações aos setores de inteligência sueca, um evidente conluio entre Estados Unidos e Suécia para forçar a extradição do jornalista, primeiro para a Suécia, e depois para os Estados Unidos. Assange neste período morava no Reino Unido, sendo detido pela primeira vez em dezembro de 2010. O governo britânico abre o processo de extradição para a Suécia, mas Assange é libertado mediante pagamento de fiança e consegue recorrer em liberdade.

Apesar da intimidação, o WikiLeaks prosseguiu na divulgação dos arquivos vazados por Manning e, em 22 de outubro de 2010, são publicados 400 mil documentos sobre a guerra do Iraque e os números revelados horrorizam mais uma vez o mundo: o vazamento mostrou uma recontagem de vítimas da guerra por parte do próprio exército dos Estados Unidos, apontando o número de 109.032 pessoas, dos quais 60% civis. Os documentos revelaram práticas de execuções sumárias, estupros e torturas de civis em postos de controle norte-americanos.

Em novembro de 2010 foi a vez da divulgação dos documentos diplomáticos estadunidenses, ou Cablegate. O total de 251.287 comunicados do Departamento de Estado dos Estados Unidos expunham dados de grande relevância jornalística: episódios inéditos de vários conflitos internacionais envolvendo a diplomacia, seu modo de operar na esfera global, suas obsessões e fontes. Por meios destes documentos foi possível compreender como o governo norte-americano mantém atividades escusas, antiéticas e opressoras em várias instâncias de poder no exterior. Era o mais abrangente relato de como funcionam as relações internacionais norte-americanas. Diferentes funcionários da alta diplomacia de 274 embaixadas dos Estados Unidos pelo mundo escreviam, em reuniões ou troca de mensagens, a respeito de várias personalidades políticas estrangeiras em linguagem sarcástica, preconceituosa e racista.

O material foi enviado do servidor do WikiLeaks para os principais veículos da imprensa global, como The New York Times, Le Monde, The Guardian, El País e Der Spiegel, que o publicaram.  A divulgação das mensagens pôs em risco as relações dos Estados Unidos com países aliados, como também dificultou a aproximação com a Rússia e países árabes. Em razão da grande crise diplomática, vários políticos norte-americanos pediram a prisão de Assange e iniciaram uma campanha para sufocar financeiramente o WikiLeaks, impedindo que empresas de cartão de crédito repassassem as doações do público à organização. Diante desse episódio, a Corte de Apelação de Estolcomo recorre à Interpol para executar a detenção de Assange pelo caso de abuso sexual e pede novamente sua extradição. As provas técnicas apresentadas por sua defesa de nada valiam no tribunal sueco.

Mas isso não intimidou o WikiLeaks e em abril de 2011, foi a vez de vazar 800 documentos secretos do Pentágono com 4.759 páginas datadas entre 2002 e 2009, assinadas pelos altos postos de comando militares do Departamento de Defesa em Miami. O conteúdo revelava que o centro de detenção de Guantánamo foi utilizado de forma ilegal para presos acusados de terrorismo, entre eles, uma criança de 14 anos e um idoso de 89 anos. O material trazia dossiês confidenciais, entrevistas e memoriais internos descrevendo o estado mental dos detidos, dentre os quais, 83 dos 779 reclusos não ofereciam nenhum risco para a segurança dos Estados Unidos, e outros 77 tiveram reconhecidas sua “improvável” ameaça ao país, configurando prisões arbitrárias.

Asilo na Embaixada do Equador

As ações para extraditar Assange para a Suécia avançavam. Acreditando se tratar de perseguição política ao jornalista, o então presidente do Equador, Rafael Correa (2007-2017), acatou, em 2012, o pedido de asilo político para Assange que, a essa altura, se dera conta de que as coisas não seriam nada fáceis para ele. Além do asilo na Embaixada do Equador, em Londres, Assange recebeu a cidadania equatoriana para que pudesse de dentro de Embaixada, na condição de cidadão, prosseguir na liderança do WikiLeaks. O fato irritou profundamente os Estados Unidos e não por acaso, o ex-presidente Rafael Correa vive, desde 2017, exilado na Bélgica, sendo condenado em setembro de 2020, em última instância, por corrupção.

Com Assange recluso na Embaixada do Equador, o WikiLeaks vazou, em outubro de 2012, mais de 100 relatórios com detalhes dos procedimentos utilizados por autoridades militares dos Estados Unidos contra prisioneiros nas prisões de Abu Gharaib (Iraque) e Guantánamo (Cuba). Os documentos foram publicados em período de reta final das eleições que elegeram Barack Obama.

Em junho de 2015, a Europa foi informada pelo WikiLeaks que era espionada, informação que, mais uma vez, provocou indignação mundial. Comunicações dos ex-líderes franceses Jacques Chirac e Nicolas Sarkosy, e do então François Hollande foram interceptadas pela Agência de Segurança Nacional (NSA) estadunidense. Dessa forma, os Estados Unidos tiveram acesso a todos os contratos e negociações franceses superiores a 200 milhões de dólares. A NSA espionou, inclusive, comunicações que discutiam a crise financeira na Grécia e a possibilidade do país abandonar a União Europeia, além de conversas oficiais de lideranças da Eurozona com Hollande e Angela Merkel, chanceler alemã.

O Brasil, país de interesse dos Estados Unidos por conta do petróleo, constava entre os espionados. Expostos, os documentos tarjados de “ultrassecretos” pela diplomacia norte-americana mostraram que a NSA grampeou a ex-presidente Dilma Rousseff, 29 números de telefone de ministros, diplomatas e assessores. O telefone via satélite Inmarsat instalado no avião presidencial, com o qual os presidentes brasileiros se comunicam quando estão a bordo da aeronave, é um dos 29 números que haviam sido grampeados pela NSA.

Entre os ministros espionados pela NSA estavam Antonio Palocci da Casa Civil, Nelson Barbosa do Planejamento, general José Elito Siqueira do Gabinete de Segurança Institucional, responsável pela segurança da presidente da República, e Washington Luiz Alberto Figueiredo das Relações Exteriores, então subsecretário-geral de Meio Ambiente.

Mais documentos são revelados em fevereiro de 2016, quando o WikiLeaks vazou as ações de espionagem feitas pela NSA contra o primeiro-ministro israelense, Benjamim Netanyahu, o ex-primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi e o então secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon. Faziam parte dos materiais divulgados ao mundo escutas das conversas entre Netanyahu e Berlusconi e uma reunião privada entre Berlusconi, Merkel e o ex-presidente francês Nicolas Sarkozy.

No ano de eleição presidencial nos Estados Unidos, em 2016, o WikiLeaks publicou um arquivo com mais de 30 mil emails de Hillary Clinton do tempo em que ela ocupava o cargo de secretária de Estado, de 30 de junho a 12 de agosto de 2014. Os conteúdos variavam de manobras de vários membros do partido Democrata, fornecimento de armas para extremistas na Síria, estratégias de campanha, transcrições de discursos e disputas internas do partido. Por conta desse vazamento, recai sobre o WikiLeaks a culpa pela vitória de Donald Trump.

Até aqui, Assange continuava vivendo, desde 2012, como cidadão equatoriano na Embaixada. Em 2017, os promotores suecos arquivaram o processo investigatório preliminar de abuso sexual, deixando de existir a materialidade para o pedido de extradição do Reino Unido para a Suécia.

Porém, em fevereiro de 2018, Assange é condenado a um ano de prisão por ter violado a condicional de 2010, quando foi libertado por pagar fiança. Em 2012, asilado na Embaixada do Equador sob ameaça de ser extraditado para a Suécia, não cumpriu as ordens de comparecer às audiências e foi condenado pelo Reino Unido por violação das regras da liberdade condicional.

Do que acusam Assange?

Até essa etapa da história, a longa batalha judicial de Assange não estava nem no começo, quando o novo presidente do Equador, Lenín Moreno, vence as eleições em 2017. Um tratamento hostil dentro da Embaixada começa a ser deflagrado contra Assange, como cortes de energia elétrica e de sinal de internet, até que no início de abril de 2019, Moreno acusou o jornalista de violar os termos de seu asilo. O pior acontece em dia 11 de abril de 2019, data em que o presidente do Equador suspende, após sete anos, o asilo e a cidadania de Assange.

Tão logo, Moreno autoriza a entrada da polícia do Reino Unido em sua própria embaixada para prender Assange sob a acusação de descumprimento de intimação judicial no Reino Unido.  Dessa forma, a Embaixada do Equador foi tomada violentamente e Assange arrancado à força, episódio que pôde ser visto em imagens que comoveram a opinião pública. O brilho altivo de Assange lhe fora roubado pelos anos de encarceramento, o jornalista havia envelhecido, e sua saúde era frágil. Segue preso, por não ter se apresentado às audiências judiciais e aguarda o julgamento de sua extradição para os Estados Unidos.

Desde que o ministro das Relações Exteriores do Reino Unido, Alan Duncan, alegou, na ocasião da prisão de Assange, em abril do ano passado, que o jornalista não poderia ser extraditado a países os quais correria o risco de ser condenado à morte ou tortura, os Estados Unidos vêm manobrando os argumentos para poderem pôr as mãos em Assange. O Departamento de Justiça norte-americano adiantou que o jornalista pode ser condenado, no máximo, a cinco anos de prisão e ser condenado pelo crime de vazamento de informações sigilosas. Mas, a considerar o teor dos documentos vazados pelo WikiLeaks, os Estados Unidos são um país que demonstram ter caráter ou palavra?

Além do crime de vazamento, o departamento de Justiça norte-americano quer condenar Assange por tentar ajudar Chelsea Manning a quebrar a senha de acesso aos documentos sigilosos do Departamento de Defesa dos Estados Unidos e cometer o crime de vazamento, para imputar-lhe atividade de racker, e não de jornalista. Manning era militar dos Estados Unidos e dispunha da senha de acesso aos documentos, fato já confirmado em seu julgamento, que a condenou a cumprir sete anos de prisão. Segundo Sara Vivacqua, Chelsea Manning detinha os documentos antes de vazar para o WikiLeaks, o que refuta a alegação de que Assange a tenha incitado a cometer o crime. “O próprio Tribunal Militar que julgou Manning reconheceu que a soldado detinha os arquivos antes das conversas com Assange”, diz Sara.

Também recai sobre o jornalista os riscos que eventualmente correu quem teve seu nome revelado nos documentos, como comandantes, uma acusação contestada por Assange, que garante ter tarjado as identidades. Como prova contra Assange, a promotoria inseriu no processo o print de um Twitter do jornal The Guardian informando que foi Assange quem orientou publicar os nomes das pessoas. A arbitrariedade e a ilegalidade da prisão, na concepção da advogada, estão nas provas não apresentadas.

A Primeira Emenda

A Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos, datada de 15 de dezembro de 1791, declara: “O congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito de um estabelecimento de religião, ou proibir o seu livre exercício; ou restringindo a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações de queixas”. A liberdade de expressão e a de imprensa, portanto, estão expressamente garantidas nos Estados Unidos, o que impede o Judiciário norte-americano de condenar Assange pela publicação dos documentos.

Da perspectiva dos Direitos Humanos e do direito à informação, os conteúdos vazados pelo WikiLeaks atendem ao interesse público. Mas, haveria a possibilidade de incriminação de Assange por vazamento? O editor-executivo do The Intercept, Leandro Demori, explica que a forma como a fonte obteve o material não é problema do jornalista. Em live que foi ao ar no dia 27 de setembro pelo seu canal do YouTube, Demori discutiu o caso Assange e apresentou um exemplo muito didático, que reproduzimos aqui, com edição: se uma fonte entra em contato com o jornalista e diz possuir uma documentação de interesse do jornalista, não é crime receber o material. Mas se o jornalista disser à fonte: mas você não tem também do fulano?, a ponto da fonte responder: não tenho, mas posso conseguir, você gostaria de ver? Ao responder sim, eu gostaria de ver, isso poderá ser entendido como crime, pois o jornalista estará incentivando a fonte a cometer mais um crime, caso os documentos primeiramente oferecidos ao jornalista tenham sido obtidos de forma ilegal. Ao recepcionar uma documentação, o jornalista não é responsabilizado pela forma como o material foi obtido, mesmo que ilegalmente. “O jornalista tem o direito legal, no Brasil e nos Estados Unidos, de receber essa documentação e, sendo ela verídica, não adulterada, poderá ser publicada, isso faz parte do jornalismo”, diz Demori em sua Live. O Código de Ética dos Jornalistas brasileiro anuncia no artigo 6º, II, que é dever do jornalista divulgar os fatos e as informações de interesse público.

Outra linha acusatória dos Estados Unidos sobre Assange é associá-lo às atividades de um racker, por ter “tentado ajudar”, alegam eles, Manning a obter acesso aos documentos se conectando ao sistema do Departamento de Defesa norte-americano. Por ser australiano, se condenado por crime de espionagem contra a segurança nacional dos Estados Unidos, sua sentença poderá ser a pena de morte, pela Lei de Espionagem de 1917.

O advogado criminalista Augusto de Arruda Botelho explica que o sigilo da fonte tem relevância tão grande quanto a própria liberdade de expressão, garantida pela Constituição Federal, de 1988, e é um direito absoluto. “Mesmo quando a informação divulgada por um jornalista for obtida mediante a prática de um crime, isso não faz com que ele esteja obrigado a revelar qual foi a sua fonte. O papel do jornalista é verificar a veracidade da informação, a segurança da fonte e divulgar aquilo que ele entender necessário”. O que não é possível, ressalta Botelho, é o jornalista, de alguma forma, participar da produção ilegal e criminosa da informação. “A partir do momento em que o jornalista apenas recebe a informação, não é ele obrigado, de forma nenhuma, revelar quem a entregou, o que não é possível, mais uma vez, é que o jornalista, em conluio, em coparticipação na produção dessa informação, faça uso de alguma medida ilegal”.

Revelações sobre o Brasil

O jornalista Fernando Morais esteve com Assange na Embaixada do Equador no Reino Unido, em janeiro de 2017. A pauta do encontro foi ouvir o asilado a respeito dos documentos existentes sobre o Brasil. Assange confirmou que a NSA havia espionado ministros, a então Presidente Dilma e a Petrobrás por meio de grampos instalados nas fibras óticas.

Outra revelação foram as reuniões privadas de Michael Temer, em 2006, na Embaixada norte-americana para apresentar as propostas de seu partido, entregar informações de inteligência política e questões diplomáticas, uma demonstração da proximidade e da convergência entre os grupos políticos do Brasil com os norte-americanos. Assange avaliou a Morais que o roubo de informações internas do País permitiu ao Departamento de Estado dos Estados Unidos traçar estratégias em favor de suas petroleiras.

Os documentos vazados pelo WikiLeaks revelaram grande interesse da ExxonMobil e Chevron pelo controle da Petrobrás, tendo o atual senador José Serra como agente viabilizador da entrega das riquezas nacionais. A publicação destes documentos vazados, nos permitem, no ano de 2020, compreender com nitidez as operações que cercam o desmonte da maior empresa pública do país, e que já foi uma das maiores do mundo: seu fatiamento para privatização. As petroleiras bilionárias roubaram dos estudantes a oportunidade da construção de uma vida pelo estudo, e dos brasileiros o direito a melhores condições de saúde.

As jornadas de junho de 2013, que desestabilizaram o governo de Dilma Rousseff e sedimentaram caminhos para o golpe jurídico-político-militar de 2016, contaram com 201 robôs para estimular os protestos, disse Assange a Morais. “Essas coisas (os protestos) não acontecem na América Latina sem suporte financeiro dos Estados Unidos”. As entrevistas com Assange podem ser assistidas no canal do Nocaute, de Fernando Morais, no youtube.

#FreeAssange

“Como o senhor avalia o comportamento da imprensa neste momento decisivo do julgamento de Assange, depois de tanto se beneficiar com a divulgação dos documentos vazados pelo WikiLeaks?”, indagou a jornalista Leda Beck ao pai de Assange, na entrevista para a TV Comunitária do Rio de Janeiro. “A cobertura do julgamento tem sido precária, longe do que esperávamos”, respondeu John Shipton. Até mesmo a Embaixada da Austrália, em Londres, nada fez. O apoio a Assange tem chegado dos movimentos civis pelo mundo, somando 560 ações de manifestações pela liberdade do jornalista.

No caso do Brasil, Leandro Demori explicou em sua laive porque “as vozes dos jornalistas não se levantavam contra o absurdo da prisão de Assange”: pelo medo da destruição de reputação causada “pela máquina da lama”. Segundo ele, “isso é a missão cumprida da máquina da lama, que é fazer com que as vozes se silenciem por diversos motivos, não importando o motivo, mas sim, o efeito final”.

Entre os políticos, o apoio mais contundente e proeminente veio do ex-presidente Lula, em forma de manifestação em suas redes sociais e entrevistas para canais progressistas e estrangeiros.

Em 2012, logo após lhe terem concedido o asilo político, Assange se manifestou pela janela da Embaixada, altivo, determinado e confiante. Suas palavras foram: “Enquanto o WikiLeaks está sob ameaça, está também a liberdade de expressão e a saúde de toda a sociedade. Permitiremos que os Estados Unidos se joguem pelo precipício arrastando-nos a todos para um mundo perigoso e opressivo, no qual jornalistas silenciam ante o medo de serem processados e os cidadãos devam sussurrar no escuro? Peço ao presidente Obama para fazer a coisa certa: os EUA devem renunciar à sua caça às bruxas contra o Wikileaks, os EUA devem dissolver sua investigação do FBI. Os EUA devem prometer que não irão processar nossos funcionários ou nossos apoiadores, devem prometer diante do mundo que não perseguirão os jornalistas por acenderem uma luz sobre os crimes secretos dos poderosos, seja WikiLeaks ou The New York Times”.

Jornalistas do mundo, uni-vos. No Brasil, a repressão à liberdade de expressão já é realidade quando uma jovem jogadora de vôlei é condenada por se manifestar como cidadã (Carol Solberg); quando chargistas são processados por sua arte (Aroeira); e jornalistas por compartilhá-los (Guga Noblat); e quando um ministro da Justiça solicita inquérito para investigar colunistas (Hélio Schwartsman).  “Há unidade na opressão, deve haver unidade absoluta e determinação na resposta”, recomenda Assange.

*Cibele Buoro é jornalista e associada da APJor

*As informações contidas nesta reportagem referentes aos juristas Lenio Streck, Martonio Mont´Alverne Lima, Pedro Serrano e à advogada Sara Vivacqua foram extraídas da laive #FreeAssange: Debate com os maiores juristas do Brasil, que foi ao ar no dia 11 de setembro de 2020, pelo canal do YouTube do Diário do Centro do Mundo.

APJor

APJor

A Associação Profissão Jornalista (APJor) é uma organização sem fins lucrativos, criada em 2016 por um grupo de 40 jornalistas, com o objetivo de defender o jornalismo ético e plural e valorizar o papel do jornalista profissional na sociedade brasileira.