Seymour Hersh, uma vida contra as mentiras dos poderosos

Aos 82 anos, o veterano repórter estadunidense narra suas aventuras e descreve sua brilhante trajetória. Irascível e insubordinado, Hersh terá passado boa parte de sua carreira como freelance, sempre questionando narrativas oficiais. Veja a resenha de Antônio Graça para o site da APJor

Por Antonio Graça*

O jornalista estadunidense Seymour Hersh afirma, na introdução do seu livro de memórias Repórter, lançado agora no Brasil, que é um sobrevivente da era de ouro do jornalismo, quando os jornais tinham dinheiro e investiam alto em matérias investigativas. Mas dele também se pode dizer, com toda razão, que é uma lenda viva da imprensa em todo o mundo.

Considerado por muitos dos seus colegas como o mais proeminente repórter de sua geração, suas reportagens são verdadeiras bombas lançadas contra mentiras, abusos e atrocidades cometidos por autoridades e potentados.

A mais notável delas foi a denúncia do massacre na aldeia de My Lai, durante a guerra do Vietnã, quando, em 16 de março de 1968, soldados do exército dos Estados Unidos assassinaram centenas de pessoas, entre elas crianças, mulheres e velhos. Foi Hersh que deu a conhecer ao mundo um dos maiores horrores das guerras da humanidade.

O surpreendente é que a matéria, apurada e escrita quando Hersh estava trabalhando como freelance, foi recusada inicialmente pela grande imprensa estadunidense. Ele a ofereceu para as revistas semanais Life e Look, por exemplo, que se interessaram pela reportagem. Então, ele a entregou para a agência Dispatch News Service que, por US$ 100, a distribuiu para editores de jornais.

A forma como Hersh começou a reportagem revela sua extraordinária intuição jornalística, seu faro aguçado para a notícia e sua inabalável persistência como profissional. Ele iniciou a investigação sobre My Lai a partir de um recorte de jornal, uma notícia publicada sem nenhum destaque, dando conta que o Exército estadunidense estava processando um militar por ter ordenado a morte de civis no Vietnã.

Foi atrás da história e terminou por produzir a reportagem que lhe rendeu o Prêmio Pulitzer e cujo impacto foi tão grande que, depois dela, começou a declinar o apoio público à participação dos Estados Unidos na guerra do Vietnã.

Ralação

Mas antes de chegar ao Pulitzer ele ralou um bocado. Começou como contínuo, no turno da noite, depois passou a repórter de polícia, na City News Bureau, uma agência de notícias de Chicago, quando tinha 22 anos. Ele lembra que uma de suas funções como contínuo era preparar cópias das reportagens à medida que eram concluídas pelos jornalistas, para serem distribuídas aos clientes da agência, entre eles emissoras de rádio e TV.

“Eu acabava meu turno invariavelmente coberto da tinta azul que tinha de colocar na máquina”, conta num tom bem humorado. Além disso, “não podia deixar meu turno sem dar uma bela esfregada, com sabão especial, na mesa de Larry Mulay, o editor do turno da manhã.

Apesar deste início modesto, Hersh tem uma trajetória fulgurante no jornalismo. Trabalhou nas mais prestigiadas publicações dos Estados Unidos, entre elas o diário The New York Times e a revista semanal New Yorker. Mas também viveu muito tempo desempregado ou como freelance por causa da sua determinação e independência.

Como afirma José Hamilton Ribeiro, outro grande jornalista, numa longa e belíssima matéria sobre o livro publicada no caderno “Ilustríssima”, da Folha de S. Paulo (02/06/2019), “se a redação em que trabalha não o apoia ou põe em dúvida sua investigação, ele pega o boné e volta a ser freelance”.

Brigão e insubordinado

Hersh tem fama de ser um cara difícil, brigão e insubordinado, e é mesmo. Que o digam alguns dos seus chefes. Ele próprio conta, com certa autocrítica, que uma vez, irritado com alterações feitas em uma série que escrevera quando trabalhava no The New York Times, arremessou uma máquina de escrever contra a janela e foi embora para casa.

Mas também demonstra sinceridade e humildade na vida pessoal e profissional contada no livro. Exemplo disso é quando relata momentos em que se autocensurou.

Quando estava na agência City News, ouviu um policial contar que tinha mandado um negro suspeito correr e atirou nele pelas costas. Hersh conseguiu um laudo do legista, mas foi orientado a não escrever nada. A alegação era que as autoridades diriam que ele mentira e seria a palavra do repórter contra a dos policiais: “Eu não tinha como provar que um assassinato tinha sido cometido a não ser que o próprio autor o dissesse, e ele, é claro, negaria tudo. Então deixei a reportagem de lado. (…) Fui cumprir meus seis meses de serviço militar, desesperado com a minha fraqueza e a fraqueza de uma profissão que com tanta facilidade se autocensurava e se tornava cúmplice. Passei a detestar ambas as práticas desde então, ainda que mais de uma vez eu tenha feito vista grossa. Eu descobrira minha profissão e aprendi, com muita rapidez, que esta não era perfeita. Mas eu também não era.”

“Se sua mãe disser que te ama, confira”

Esta é uma das lições que traz o livro. Mas ele também está repleto de histórias de aprendizagem profissional e orientações valiosas para se fazer o bom jornalismo. Hersh afirma, por exemplo, que uma regra essencial é checar as informações. Nesse sentido, conta que um dos editores com quem trabalhou ficou famoso por ter dito a um repórter: “Se sua mãe disser que te ama, é bom dar uma conferida”. Relata ainda que muito cedo aprendeu a nem sempre confiar nas autoridades e que dar a notícia correta é mais importante do que ser o primeiro a publicar.

Sobre o momento atual do jornalismo, sua avaliação é bem crítica: “Estamos saturados de notícias falsas, informações exageradas, incompletas, asserções inverídicas feitas sem parar, nos jornais, nas televisões, nas agências de notícias online, nas redes sociais”.

Segundo ele, os jornais continuarão demitindo repórteres, reduzindo a equipe e encolhendo o orçamento disponível especialmente para reportagens investigativas, cujo custo é elevado. O resultado é imprevisível e ainda há grande capacidade de irritar leitores e atrair processos caros.

Mas apesar deste cenário, Hersh, hoje com 82 anos, continua na guerra e diz que o jornalismo é uma profissão da qual não se arrepende. “Esta minha profissão é incrível”, diz ele na conclusão desse livro fascinante: “Passei a maior parte da minha carreira escrevendo matérias que questionavam a narrativa oficial e fui muito recompensado por isso, tendo sofrido apenas um pouco. Eu não faria nada diferente”. Segundo o escritor britânico John Le Carré, Repórter “é leitura essencial para todo jornalista e aspirante a jornalista do mundo inteiro”.

Serviço
Repórter – Memórias
Seymour M. Hersh
Editora Todavia
384 páginas
R$ 74,90

*Antônio Graça é jornalista, associado e colaborador da APJor

Publicado originalmente no site da APJor em 24 de junho de 2019
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A Associação Profissão Jornalista (APJor) é uma organização sem fins lucrativos, criada em 2016 por um grupo de 40 jornalistas, com o objetivo de defender o jornalismo ético e plural e valorizar o papel do jornalista profissional na sociedade brasileira.