Audiência das big techs no congresso dos EUA

Monopólio: “Big Techs” tentam se explicar, mas não convencem

Com perguntas ótimas e respostas pífias, a audiência pública das gigantes Google, Facebook, Amazon e Apple no Congresso dos EUA foi um manancial de boas pautas. O presidente da subcomissão disse "estar convencido de que as quatro são de fato monopólios” e prometeu soluções, em defesa da democracia

Por Leda Beck*

Quem assistiu a audiência pública no Congresso dos Estados Unidos, na quarta-feira, 29, terá
notado as duas respostas mais frequentes dos quatro presidentes de gigantes da tecnologia:
“não sei” e “não concordo”, esta última quase sempre seguida por uma longa e hermética
explicação, rapidamente interrompida pelo deputado que fizera a pergunta. Cada parlamentar
dispunha de apenas cinco minutos para inquirir as testemunhas.

O deputado Jerrod Nadler, democrata eleito pelo estado de Nova York e presidente da Comissão
de Justiça da Câmara dos Deputados dos EUA, foi muito direto com Mark Zuckerberg, presidente
do Facebook, numa dessas herméticas respostas: “Você está desperdiçando meu tempo”. E fez
outra pergunta, dessa vez dirigida a Sunder Pichai, presidente da Google.

Esses dois —Zuckerberg e Pichai— foram os mais assediados pelos parlamentares, mas Tim Cook,
da Apple, e Jeff Bezos, da Amazon, também sofreram muito nas mãos dos membros da Subcomissão
de Antitruste, que é parte da Comissão de Justiça.

No final da audiência de mais de cinco horas de duração, o presidente da subcomissão, David
Ciciline, democrata de Rhode Island, encerrou o encontro assim: “Estou convencido de que
estas quatro empresas são de fato monopólios. Algumas precisam ser divididas e reguladas,
porque esmagam empresas independentes. Os homens mudaram, mas a história é a mesma. Isso
precisa acabar. Vamos propor soluções, pois podemos ter democracia e podemos ter
concentração de riqueza nas mãos de poucos, mas não podemos ter as duas coisas ao mesmo
tempo”.

“Delirantes teorias”

Os “homens” e a “história” a que Ciciline se refere datam do século XIX: em 1890, a Lei
Sherman controlou, pela primeira vez, cartéis e oligopólios nos setores de ferrovias, aço,
petróleo e açúcar. Em resposta, em vez de formar trustes, as empresas começaram a promover
fusões e aquisições —mas em 1914 a Lei Clayton proibiu fusões e aquisições que pudessem
prejudicar a livre concorrência. No mesmo ano, o Congresso dos EUA criou a Comissão Federal
de Comércio (FTC, na sigla em inglês) para vigiar práticas comerciais injustas. Hoje, até o
Ministério da Justiça deles tem uma Divisão Antitruste para implementar essas três
legislações — Sherman, Clayton e a Lei da FTC.

Os parlamentares da subcomissão investigavam há um ano as atividades das quatro gigantes e
fizeram a lição de casa direitinho: entrevistaram funcionários e ex-funcionários,
executivos, clientes e parceiros das quatro empresas. Chegaram à audiência preparadíssimos
e, por isso mesmo, as perguntas foram infinitamente melhores do que as respostas,
principalmente as formuladas por jovens deputados democratas.

Mas os republicanos não estavam preocupados com questões antitruste. Concentraram-se no que
uma dessas jovens deputadas democratas, Mary Gay Scanlon, da Pensilvânia, classificou como
“delirantes teorias da conspiração”: o “perigo chinês” (tão semelhante ao “perigo comunista”
dos anos da Guerra Fria) e a “perseguição aos conservadores nas redes sociais”.

Nesse campo, a bola da vez era o vídeo de 45 minutos para promover a cloroquina como uma
espécie de cura milagrosa da Covid-19, difundido pelo site de extrema-direita Breitbart
News, de Steve Bannon, o homem por trás da famosa Cambridge Analytica. Tanto o Twitter como
o Facebook tiraram o vídeo do ar na véspera da audiência.

Republicanos como Jim Jordan, do estado de Ohio, Jim Sensenbrenner, do Wisconsin, Greg
Steube e Matt Gaetz, ambos da Flórida, fizeram várias intervenções em torno desses temas.
Jordan perguntou aos quatro, por exemplo, se a China roubava tecnologia de empresas
estadunidenses.

Três deles responderam que não tinham conhecimento disso em suas próprias empresas, mas Mark
Zuckerberg, do Facebook, acusado pelo mesmo Jordan de “perseguir conservadores”, aproveitou
a oportunidade para fazer um afago na extrema-direita: “Todo mundo sabe que isso é verdade,
está fartamente documentado”. Foi uma rara resposta direta de Zuckerberg.

“Tríade sombria”

Sensenbrenner quis saber quais eram os padrões do FB para “filtrar discursos políticos”.
Zuckerberg garantiu que sua empresa era “a que mais defende a liberdade de expressão” e que
só bloqueia “propaganda terrorista, exploração infantil e promoção da violência” (o que não
justifica o bloqueio de fotos de indígenas nus na Amazônia, obras de arte ou seios
femininos, por exemplo).

O democrata Jamie Raskin, de Maryland, lembrou a “tríade sombria” citada no livro de
Christopher Wylie, ex-funcionário da Cambridge Analytica que denunciou o esquema:
“narcisismo, maquiavelismo e psicopatia” foram usados para difundir mentiras pelo Facebook
na eleição de Donald Trump em 2016 e no referendo do Brexit, na Grã-Bretanha. Em seguida,
Raskin perguntou a Zuckerberg o que sua empresa fez em relação a isso.

“Derrubamos 89% dos perfis falsos antes mesmo que os usuários possam vê-los”, garantiu o
presidente do Facebook, afirmando que, desde 2016, contratou “mais de 30 mil pessoas para
trabalhar em segurança e elas encontraram mais de 50 diferentes redes de comportamentos
inautênticos coordenados”. A Facebook chegou a construir sistemas de inteligência artificial
e algoritmos específicos para identificar discursos de ódio, disse Zuckerberg.

Mesmo assim, como Raskin lembrou, a empresa de Zuckerberg sofreu um recente boicote de
grandes anunciantes, entre eles Patagonia, Levi’s, McDonald’s, Volkswagen, Heineken e até a
Coca-Cola, justamente por causa da difusão de mentiras e de discurso de ódio nas páginas do
FB.

Em resposta, Zuckerberg insistiu nas “defesas” construídas pela empresa desde 2016 para
garantir a lisura de eleições, “não só nos EUA mas em todo o mundo”. “Derrubamos bilhões de
contas falsas todo ano”, acrescentou Zuckerberg. “Só uma pequena porcentagem dessas contas
tenta interferir em eleições.”

Práticas monopolistas

A maior parte das perguntas girou em torno de uma prática notória dos quatro gigantes da
tecnologia: a coleta de dados de usuários, parceiros e clientes de parceiros, o que lhes
permite comprar concorrentes ou simplesmente copiar seus produtos para forçá-los a vender
por um preço mais baixo. (No Brasil, já foi aprovada uma Lei Geral de Proteção de Dados
Pessoais, a LGPDP, que coibiria essas práticas, mas que permanece à espera de
regulamentação.)

Nadler apontou a compra da Instagram como uma “típica violação da legislação antitruste”. E
Pramila Jayapal, democrata do estado de Washington, na Costa Oeste, perguntou a Zuckerberg
se ele já tinha ameaçado clonar produtos de uma empresa, ao mesmo tempo em que tentava
comprar essa empresa.

O presidente da Facebook negou, claro, mas Jayapal leu uma confidência do cofundador do
Instagram, Kevin Systrom, a um investidor que depôs no subcomitê. Systrom dissera temer que
o Facebook entrasse no “modo destruir”, já que estava criando o Facebook Camera (um clone do
Instagram).

Zuckerberg lhe dissera para escolher entre ser “parceiro” ou “concorrente”, e Systrom não
viu outra opção, a não ser vender a empresa ao FB. O caso do SnapChat foi parecido, segundo
depoimento de seu fundador, Evan Spiegel, ao subcomitê. Spiegel disse que o FB estava
clonando sua plataforma ao mesmo tempo em que tentava comprá-la.

Jayapal foi além: “O Facebook coleta e monetiza nossos dados e, em seguida, usa esses dados
para espionar concorrentes e copiar, comprar ou eliminar rivais. O próprio modelo de
negócios do Facebook torna impossível o surgimento independente de novas empresas e isso
causa danos à nossa democracia, prejudica pequenos negócios e fere consumidores. Trata-se de
um caso emblemático de poder monopolista”.

“Zona de morte”

Com base numa reportagem do Wall Street Journal, publicada em abril, a deputada também
acusou a Amazon de criar minúsculas categorias e subcategorias de produtos, o que lhe
permitiria acessar dados detalhados de terceiros (as empresas que vendem seus produtos na
Amazon) em categorias supostamente “agregadas”, às vezes com apenas uma ou duas empresas
numa categoria. Bezos disse que leu o artigo do WSJ, mas que ainda está investigando o
assunto.

O deputado Joe Neguse, democrata do Colorado, também envolveu a Amazon nas acusações de
clonagem. De acordo com a mesma reportagem do WSJ, muito citada na audiência, a Amazon
investiu numa empresa chamada DefinedCrowd. Por causa do investimento, teve acesso a uma
série de informações confidenciais da empresa, inclusive tecnologia e finanças.

Menos de quatro anos depois, em abril deste ano, a unidade de computação em nuvem da Amazon
lançou um produto de inteligência artificial que “faz exatamente o que a DefinedCrowd faz”,
segundo a presidente dessa empresa, Daniela Braga. Bezos alegou ignorar o caso, mas prometeu
investigar. Neguse explicou seu interesse: “Estamos muito preocupados com a emergência de
uma zona de morte da inovação”.

Outro caso de óbvia clonagem, apontado pelo republicano Ken Buck, também do Colorado, foi o
da Vocalife, procurada pela Amazon, supostamente interessada em investir na tecnologia de
detecção de voz. Depois da visita de funcionários da Amazon, que tiveram acesso até a dados
de engenharia, nunca mais houve contato —até que a Amazon lançou seu próprio dispositivo de
detecção de voz, o Echo.

Ciciline fez perguntas semelhantes a Pichai, da Google: “Por que vocês roubam conteúdo de
empresas honestas?” Pichai tergiversou, mas Ciciline insistiu, sempre com base em
depoimentos de empresas diretamente prejudicadas pela Google —que, quando reclamavam, eram
ameaçadas com exclusão nas buscas. O deputado disse mais: “63% das buscas iniciadas no
Google terminam em sites da própria Google. Vocês identificam os potenciais concorrentes
para esmagá-los. Qualquer negócio na web é obrigado a pagar uma taxa à Google”.

Hank Johnson, democrata da Geórgia, acusou a Apple da mesma coisa: “Vocês coletam os dados
dos desenvolvedores listados na AppStore e usam esses dados para decidir se produtos
semelhantes seriam lucrativos para a Apple?” Tim Cook não confirmou nem desmentiu. Limitou-
se a contar a história da loja de aplicativos para iPhone, que começou em 2008 com 500
aplicativos e hoje tem 1,7 milhão de aplicativos, dos quais só 60 são da própria Apple.
Disse ainda que há uma “briga de rua” por fatias do mercado de smartphones.

Fim dos jornais

Parece que a imprensa brasileira não considerou importante a audiência de quarta-feira. O
Valor deu uma nota da Associated Press (AP), mas os demais diários ignoraram solenemente o
evento que pode resultar numa grave ação antitruste contra os quatro gigantes da tecnologia.
E, no entanto, algumas perguntas trataram justamente da morte dos jornais locais nos EUA (e
no mundo) por causa da concentração da publicidade principalmente nas mãos da Google.

Foi Jerrod Nadler, o presidente da Comissão de Justiça, que levantou o assunto: “Mais de 200
condados nos EUA já não têm um jornal local e dezenas de milhares de jornalistas foram
despedidos nos últimos anos. A razão está no fato de que Google e Facebook capturam hoje a
maior parte da receita de publicidade digital. Embora os jornais produzam um conteúdo
valioso, quem tira proveito desse conteúdo são a Google e a Facebook. Os publishers nos
disseram que essas duas companhias mantêm seu domínio nesses mercados, em parte, por meio de
conduta anticoncorrencial, assim como por conflito de interesse”.

Além disso, Nadler lembrou que, em 2015, a Facebook reportou altos índices de visualização
de vídeos, e num ritmo crescente. Com base nessa informação, os donos de jornais despediram
centenas de jornalistas para investir em suas divisões de vídeo. Mas, em 2018, descobriu-se
que a Facebook tinha inflado esses dados e sabia disso há anos antes de tornar público o
erro. “A Google ameaçou muito o jornalismo nos EUA e agora estão fazendo dinheiro ao decidir
quais notícias os leitores estadunidenses podem ver”, disse Nadler.

Jayapal, a democrata do estado de Washington, também abordou o problema do jornalismo. “Há
uma grande urgência em proteger o jornalismo independente e isso exige discutir receitas
publicitárias”, disse ela a Pichai, da Google. Há mais de dois milhões de sites, inclusive
de jornais, que usam o Google AdSense e outras ferramentas da empresa para publicidade
digital.

Quanto a Google ganha nisso? Pichai gaguejou, a própria deputada respondeu: à primeira
vista, algo entre 50% e 60% da receita; mas, como tanto os sites quanto os anunciantes
precisam passar por um intermediário que é a própria Google, esse porcentual pode chegar a
90%, segundo um recente estudo da CMA Market, que acompanha o mercado de publicidade
digital. Como disse Nadler ao encerrar o encontro, “os homens mudaram, mas a história é a
mesma”. De fato.

*Leda Beck é jornalista e associada à APJor

Para saber mais:

 

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A Associação Profissão Jornalista (APJor) é uma organização sem fins lucrativos, criada em 2016 por um grupo de 40 jornalistas, com o objetivo de defender o jornalismo ético e plural e valorizar o papel do jornalista profissional na sociedade brasileira.