Como frear o assédio judicial ao jornalismo independente?

O grupo Amigos de Luís Nassif reúne-se pela primeira vez nesta segunda-feira (11/01) para procurar soluções para o problema. Uma dessas soluções é regulamentar a profissão de jornalista, como propõe a jurista Carol Proner. Veja na matéria da jornalista Leda Beck para o site da APjor

Por Leda Beck*

Todos os debates democráticos sobre as grandes questões brasileiras ficam dificultados, senão impedidos, pelo assédio judicial a jornalistas. Filhote do lawfare lavajatista e nutrido pelo clima de ódio que emana da Presidência da República, o assédio judicial agora ocorre de forma sistemática contra a mídia independente, que não tem a musculatura da mídia corporativa para resistir jurídica e financeiramente.

O objetivo final do ataque é censurar reportagens e calar repórteres. Luís Nassif e J. P. Cuenca são os casos mais recentes entre inúmeros outros jornalistas perseguidos em juízo, num festival de litigâncias de má fé. Como se não bastasse o lawfare, muitos jornalistas também são vítimas da censura imposta por plataformas de redes sociais, como ocorreu recentemente com Mariana Kotscho e Roberta Manreza, que tiveram mais de mil reportagens censuradas pelo YouTube com a remoção de seu canal Papo de mãe, há 11 anos no ar.

Para tentar estancar essa sangria, o deputado Paulo Teixeira (PT-SP) criou o grupo Amigos de Luís Nassif, que inclui economistas, auditores, advogados, juristas, ex-ministros, jornalistas, intelectuais e representantes de várias outras entidades profissionais. Convidado para o encontro, o sociólogo português Boaventura de Souza Santos respondeu: “Com muito gosto e disposto a defender uma das vozes mais lúcidas do Brasil atual”.

Esse grupo reúne-se pela primeira vez nesta segunda-feira, dia 11 para traçar uma estratégia de resistência e combate ao assédio judicial. “O primeiro passo é dar visibilidade ao que está acontecendo”, explica Teixeira. “As pessoas poderiam entender isso no limite de uma disputa jurídica, mas não é disso que se trata – o assédio judicial apenas procura sufocar vozes divergentes.”

Como o próprio Nassif lembra, o caso dele não é único (ver lista incompleta dos atingidos ao pé deste texto). Muitos outros jornalistas, especialmente os que não estão vinculados à mídia corporativa, têm sofrido há anos os ataques de juízes de primeira instância, que costumam usar dois pesos e duas medidas para os diferentes campos da imprensa brasileira —a corporativa e a independente. Sofrem também a censura de redes sociais, exercida com base na pressão de “denúncias” de leitores ou espectadores, em geral robôs de software articulados entre si para derrubar conteúdos que desagradam seus manipuladores.

Proteger a profissão

“A solução passa necessariamente pela construção de um marco regulatório para o profissional de jornalismo”, pondera Carol Proner, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), diretora do Instituto Joaquín Herrera Flores (IJHF) e membro da executiva nacional da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), que participa do grupo. De fato, desde a queda do diploma em 2009, quando o ministro Gilmar Mendes comparou jornalistas a cozinheiros, a profissão perdeu quase todo o aparato legal que a protegia. É por essas e outras que a APJor tem proposto uma nova institucionalidade para os jornalistas.

Além disso, diz Proner, “nenhum dos objetivos vinculados a um processo de responsabilização é atingido pelo assédio judicial. A paralisia das contas pessoais e empresariais das vítimas impede todo o resto, da liberdade de imprensa e expressão ao pagamento de possíveis indenizações”.

Por sua vez, o presidente do Conselho Federal de Economia (CFE) e membro da direção dos Economistas pela Democracia, Antonio Corrêa de Lacerda, lamenta: “A sociedade brasileira está muito inerte. Quem viveu a ditadura sabe que essas coisas começam assim, mas não terminam assim: tendem a se agravar. No meu caso, como economista, se você não tem uma imprensa livre, você dificulta o debate das grandes questões econômicas”.

Ao seu lado, além dos citados, também estarão presentes à reunião de segunda-feira Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça; Giuliano Galli, do Instituto Vladimir Herzog; representantes da Associação Profissão Jornalista (APJor), da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB); e membros do Muda MP, do Prerrogativas, do Juízes pela Democracia e de outras entidades da sociedade civil que defendem o Estado de Direito, os direitos humanos e a justiça social.

A médio prazo, os participantes esperam alcançar uma normativa que impeça, de vez, que juízes de primeira instância e alguns desembargadores continuem a desrespeitar a Constituição e a promover a censura à imprensa, impondo às suas vítimas o pagamento de valores desproporcionais, que estão levando jornalistas e sites independentes ao estrangulamento financeiro.

 

LISTA (PARCIAL) DE JORNALISTAS ATINGIDOS POR ASSÉDIO JUDICIAL

 

* Leda Beck é jornalista associada à APJor. Colaboraram Lia Ribeiro Dias e Adriana do Amaral, também jornalistas associadas à APJor

Para saber mais:

Reportagens da APJor:

Cala-Boca da Justiça sufoca mídia independente

Jornalismo sob ataque: censura judicial, bloqueio de contas e crackers

Programa da TV Cultura: Assédio judicial

Carol Proner sobre o caso Intercept Brasil: As quatro capas de proteção constitucional do The Intercept: imprensa, expressão, informação e verdade histórica

TV GGN: A grande frente contra abusos do Judiciário

Artigo 19: Violações à Liberdade de Expressão – 2019/2020

Caso Amaury Júnior: Autor de Privataria tucana é condenado a 7 anos de prisão

Caso Ponte Jornalismo: Justiça censura entrevista de empresária negra a Ponte e Alma Preta

Caso Auler: DPF Erika Marena perde em mais uma ação contra o blog

Caso Campos Mello: Livro desvenda cultura do ódio na era digital

Notas de repúdio à censura ao GGN:

 

[1] Jean Meslier (1664-1729) é considerado um precursor do Iluminismo. Seu “testamento” incluía esta frase famosa: “L’homme ne sera jamais libre jusqu’à ce que le dernier roi est étranglé avec les entrailles du dernier prêtre” (o homem nunca será livre até que o último rei seja enforcado com as tripas do último padre).

APJor

APJor

A Associação Profissão Jornalista (APJor) é uma organização sem fins lucrativos, criada em 2016 por um grupo de 40 jornalistas, com o objetivo de defender o jornalismo ético e plural e valorizar o papel do jornalista profissional na sociedade brasileira.